Portugal-Angola: uma relação ultra especial
O Estado português concedeu a Luanda ainda mais uma oportunidade para destratar Portugal.
As relações luso-angolanas voltaram a ser notícia pelas piores razões: o Estado português concedeu a Luanda ainda mais uma oportunidade para destratar Portugal. Após umas eleições de cuja limpeza toda a gente imparcial duvida, o nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, deslocou-se à capital angolana para assistir à tomada posse de um novo Presidente indicado (indigitado?) por José Eduardo dos Santos, que durante os 38 anos do seu mandato montou e presidiu, isento de toda a responsabilidade e censura, a uma tirania cleptocrata cuja nomenclatura, a começar pelo próprio, foi acumulando fortunas colossais ao mesmo tempo que o povo angolano era votado ao mais completo abandono e à mais negra miséria, na qual permanece afundado. A mero título de exemplo: só no Bloco de Urgência Pediátrica do Hospital Américo Boavida, o segundo maior de Angola, morrem por dia, em média, 25 a 30 crianças (Rafael Marques, Observador, 07.03.16).
Desde Fevereiro de 2017 que a ministra da Justiça, Van Dunem, aguarda carta de chamada para uma visita oficial à ex-colónia, que naquele mês fora cancelada em virtude de o Ministério Público português se ter atrevido a acusar formalmente o sr. Manuel Vicente, vice-presidente do governo de Luanda e ex-presidente da Sonangol, de corrupção activa e branqueamento de capitais. Na altura também ainda se falou numa ulterior visita do primeiro-ministro. Acabou o Inverno, acabou a Primavera, está a acabar o Verão... e nenhum governante português pôs os pés em solo angolano.
A tomada de posse de João Lourenço afigurou-se uma boa oportunidade para sanar as “fricções” que têm empanado as relações luso-angolanas. Marcelo Rebelo de Sousa, convidado, apresentou-se em Luanda, e seria de esperar que com o seu inigualável talento de sedutor conseguisse limar arestas, olear e reavivar “a relação tão especial que existe entre Portugal e Angola” (João Soares, PÚBLICO, 28.09.17). Mais um erro de gnose. Por entre ovações, Marcelo também foi recebido com assobios, ou seja, vaiado. Mau agoiro. No discurso de posse, João Lourenço, é claro, desempenhou o papel de desmancha-prazeres que os seus superiores hierárquicos lhe encomendaram. Ao enunciar a lista dos “principais parceiros” com que Angola contava, coibiu-se acintosamente de citar Portugal. Que indelicadeza e que injustiça! Portugal, que, sem a exigência de qualquer contrapartida, depositara jubilantemente a soberania da antiga colónia nas mãos do MPLA!
Por cá, o primeiro-ministro reafirmava que as nossas relações com Angola eram (e continuariam) excelentes (PÚBLICO, 28.09.17), e João Soares, nesta mesma entrevista que já citei, qualificou a omissão de Portugal como uma “picardia inútil”, uma graçola de mau gosto. E sem importância, está-se mesmo a ver, porque a “componente afectiva muitíssimo grande” que cimenta as relações “incontornáveis” entre Portugal e Angola resiste a todas as picardias, a todos os atritos e até a todos os desentendimentos.
João Soares limitou-se a declinar a versão oficial, comum a todos os governos, a respeito deste dossier delicadíssimo. Invariavelmente, faz parte dessa versão a invocação da amizade, do afecto entre os dois países, entre os dois povos, entre a ex-metrópole e a ex-colónia. Esta litania sustenta-se artificialmente em dois pressupostos errados. Primeiro, antes de tudo o mais Portugal e Angola são Estados, e as relações entre Estados pautam-se pelos respectivos interesses, e não por estados de alma afectivos. Estados que se dão muito bem e que se dizem “amigos” significa, traduzindo, que têm fortes interesses comuns, donde derivam convergências geopolíticas, geoeconómicas e outras.
Segundo, com quem temos relações não é com o povo angolano, é com o Estado angolano, o que significa, mais esmiuçadamente, que com quem temos relações é, na verdade, com o MPLA, que domina integralmente o Estado — o que é totalmente diferente de qualquer “amizade” entre povos. Daqui nascem os problemas, para usar uma expressão amena. Por um lado, o MPLA não esquece, nem pode esquecer, o passado de colónia; e o facto de se ter tornado uma ex-colónia não o dispensa, por motivos histórico-ideológicos compreensíveis, de se afirmar soberano precisamente contra a ex-metrópole. Por outro lado, o MPLA, usando o Estado como instrumento de uma tirania cleptocrática, só se poderia “dar bem” com Portugal desde que nós prescindíssemos de aplicar aos angolanos a nossa ordem jurídica interna, que condena como crimes contra a Lei e o Estado de Direito os delitos que os senhores do MPLA gostariam e precisariam de perpetrar para a partir desta embocadura atlântica da Europa continuarem a engrossar as suas fortunas escabrosas.
Há tempos (PÚBLICO, 16.08.17), Eduardo dos Santos proclamou que Angola não precisava de “falsos empresários”. Pois Portugal também não. Mas, infelizmente, os “falsos empresários” de lá e de cá tornam as relações “afectivas” entre Portugal e Angola “incontornáveis”. Tudo se lhes subordina, incluindo a dignidade mínima de Portugal. Dava dinheiro para saber a história suja destes “afectos”.