ExperimentaDesign: o fim da bienal, 18 anos depois
“Um marco” e uma aventura antes de Lisboa estar na moda, aproximou o público do design e o design da cultura. Rasgo, críticas e negócio – como se fez e o que fez a Experimenta?
A bienal ExperimentaDesign acaba quando atinge os 18 anos, com uma história feita dos triunfos do fulgor da juventude, mas também das dores de crescimento e cisões da muito adulta tarefa de pôr o design no mapa.
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A bienal ExperimentaDesign acaba quando atinge os 18 anos, com uma história feita dos triunfos do fulgor da juventude, mas também das dores de crescimento e cisões da muito adulta tarefa de pôr o design no mapa.
Numa Lisboa que ainda não tinha Madonna, mas que acabara de sair da Expo-98, nascia uma bienal que queria mostrar que “o design é uma metodologia, uma forma de se chegar a um objectivo”, como dizia, em Setembro de 1999 e dias antes da primeira bienal Experimenta, Marco Sousa Santos. O PÚBLICO anunciava a chegada da “primeira bienal portuguesa sobre cultura material”, meses depois da abertura do Museu do Design no Centro Cultural de Belém e dez anos antes do nascimento do Museu do Design e da Moda que lhe sucederia. A Experimenta era uma ideia de Marco Sousa Santos, já um dos designers mais reputados em Portugal e fundador do Atelier ProtoDesign, lançada a Guta Moura Guedes, ainda estudante de Design e a trabalhar noutro atelier. Partilhariam com o designer José Viana a criação da Experimenta – Associação para a Cultura de Projecto.
“Começar foi muito arriscado. A primeira edição foi extraordinária”, diz hoje Guta Moura Guedes, que há mais de uma década se tornou voz e rostos quase únicos da Experimenta, a que preside. Marco Sousa Santos sairia em 2001 e não quis prestar declarações ao PÚBLICO. “A ExperimentaDesign nasce como uma plataforma internacional de experimentação e investigação na área do design”, evoca Moura Guedes, com os “objectivos de partilhar informação, de permitir que os designers pudessem ter condições para investigar mais nesta disciplina”, nomeadamente com projectos originais, exposições, debate. Uma associação cujo projecto mais (re)conhecido é uma bienal, um evento que, a cada dois anos, agitava Lisboa.
Os números dão apenas uma ideia do que representava a bienal para a capital portuguesa — foram 59 os espaços lisboetas ocupados, muitas portas abertas pela primeira vez ao grande público e à imprensa, designers e estudantes maravilhados. Era um dos primeiros eventos do género no mundo. “A sua popularidade encorajou seguramente outros a montar os seus próprios festivais de design”, sugere a crítica de design britânica Alice Rawsthorn, uma das oradoras que este sábado encerra a última edição, simbólica e de um só dia de conferências, exposição e lançamento de livro sobre a bienal no CCB. A programação ampla aliava-se a algum fausto, a festas, a cidade sentia algo novo.
“Ao procurar coisas que traziam alguma diferença em relação ao Portugal que eu conhecia há dez anos, a Experimenta era uma delas”, dizia Eduardo Prado Coelho em 2001, na apresentação da 2.ª edição da bienal. A primeira impressão de Stefan Sagmeister, um dos mais conhecidos designers gráficos do mundo, “foi GRANDE”, como agiganta intencionalmente ao PÚBLICO num email em vésperas de também ele vir falar ao CCB este sábado. “Lembro-me de ter ficado arrebatado pelos espaços públicos imensos que a Experimenta ocupava”, já em 2005, quando visitou a bienal pela primeira vez.
O contexto do seu nascimento é resumido por dois dos seus antigos associados e colaboradores. A Experimenta “vinha de uma onda”, a da Expo-98, “de transformação do país”, que já crescera com Lisboa Capital da Cultura em 1994 — “havia uma abertura nacional”, recorda Carla Cardoso, professora e ex-coordenadora de produção da bienal. “Faltava em Lisboa um evento relacionado com o design, com a cultura de projecto como a Experimenta assumiu — não tanto de carácter comercial, mas de carácter cultural, experimental, e que pudesse aproximar o público de uma ideia do design enquanto área de pensamento e artística”, diz Cardoso, membro da direcção da associação entre 2004 e 2006. Para Frederico Duarte, investigador e curador de design, os fundadores da Experimenta incorporaram o “espírito do seu tempo”, marcado também “pelo primeiro Ministério da Cultura chefiado por Manuel Maria Carrilho”. O tempo “do cosmopolitismo do Lux ou da revista Wallpaper*. Celebrar importava. E o estilo também. No caso da EXD celebrava-se a cultura do design, em vez de promover o design para a indústria. “O seu desafio foi suster um modelo em que a celebração e o estilo não ultrapassassem a substância.”
A bienal trouxe ao país agentes do firmamento internacional: os designers-estrela e os colegas de disciplina e pensamento de constelações igualmente recheadas da arquitectura. Achille Castiglioni (1999), Philippe Starck e Konstantin Grcic (2003), Frank Ghery, os Campana ou Marc Newson (2005), Rem Koolhaas (2008), Jasper Morrison (2013). Deu visibilidade interna aos portugueses que já a tinham, como Álvaro Siza ou Souto Moura, mas também a Filipe Alarcão, Rita Filipe, Fernando Brízio ou Miguel Vieira Baptista. Mostrou o trabalho de Zaha Hadid ou Dieter Rams (2001), produziu 99 projectos originais, entre exposições, conferências ou performances e intervenções urbanas. O balanço, feito em números quando do anúncio, em Maio, do fim da bienal, contabilizava 1883 convidados e mais de um milhão de visitantes.
Um dos seus traços distintivos era o tom interdisciplinar, não só chamando a si a habitual parceira que é a arquitectura mas também o carisma das artes que muitas vezes o design namora. Lee Ranaldo, dos Sonic Youth, tocou numa performance em 2003, artistas plásticos como Fernanda Fragateiro ou Xana decoraram montras, Pedro Cabrita Reis deu luz a zonas da cidade, o coreógrafo Rui Horta mostrava a sua peça Pixel na edição de 2001, o ciclo de cinema Designmatography é recordado com carinho. A bienal convocava também os nomes do momento de outras áreas — o cenógrafo Robert Wilson falou na edição inaugural, o neurocientista António Damásio em 2001, o prémio Pritzker de 2009 de Peter Zumthor foi antecipado por uma retrospectiva em Lisboa em 2008.
Em 2003 e à terceira edição, era rebaptizada — era a Bienal de Lisboa. “Ambicionava ser para a cidade um ponto de encontro de várias disciplinas em torno do design. Foi muitíssimo importante no cenário lisboeta”, recorda Pedro Gadanho, hoje director do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, da Fundação EDP, e que foi director adjunto e de programação com o artista João Paulo Feliciano das edições de 2001 e 2003.
"Não foi nada fácil”
Como se fazia tudo isto? E como chega o projecto ao fim, numa altura em que uma bienal com um modelo similar vai nascer entre Porto e Matosinhos em 2019?
As primeiras edições definiram um caminho e um tom que elevou o prestígio nacional e internacional da Experimenta. Pedro Gadanho lembra que, com Feliciano e Moura Guedes, abordaram “a produção cultural como uma coisa mais complexa, variada”. “O design é por natureza uma prática multidisciplinar. O meu contributo foi fazer com que isso passasse a ser entendido por muito mais pessoas. Como quase sempre nestas coisas fui semibem sucedido”, lembra Feliciano. Pedro Gadanho fala de um modelo de trabalho mais ágil e de modelo de financiamento que era “um terço do Estado, um terço de apoios europeus, um terço privado”.
Ao longo dos anos a Experimenta, uma associação cultural sem fins lucrativos, teve apoios públicos vários, dos fundos comunitários aos autárquicos e estatais (entre 2009 e 2013, por exemplo, foram objecto de protocolo 750 mil euros vindos do Ministério da Economia e 1,5 milhões de euros da Câmara de Lisboa) e até apoios da Direcção-Geral das Artes. Teve ainda uma relação estreita com parceiros e patrocinadores como a EDP, a Galp, a Renault, o Ikea ou a Central de Cervejas. Acumulou também um passivo e dívidas que foram dando azo, juntamente com discórdias internas quanto à estratégia da associação mais inclinada para o negócio, a tensões na Experimenta e ao que alguns consideram ser a sua perda de pujança e relevância. Depois de 2005 “começa a notar-se uma espécie de quebra”, considera Carla Cardoso, que moveu no passado processos judiciais contra a associação por dívidas, que estão sanadas. Frederico Duarte fala de “crescente desorientação programática”.
As equipas reduzem-se, perdem-se alguns nomes, ganham-se outros. “A Experimenta Design demorou algum tempo até alcançar o seu pico de importância e visibilidade. Não foi um processo nada fácil”, diz João Paulo Feliciano, que saiu em 2005 da direcção e da associação em 2008. “Talvez tenha acontecido que no momento em que a Bienal alcança esse reconhecimento as pessoas que a pensavam e faziam já estavam cansadas. Certamente a dinâmica que produziu as bienais entre 2001 e 2005 já não estava lá.”
O público continuava a aderir, das dezenas de milhares dos primeiros anos para uma média de 116 mil visitantes por edição, segundo números da organização. Guta Moura Guedes, cujo nome se confunde há mais de uma década com o da associação e bienal, recusa ao PÚBLICO que a programação e a bienal se tenham ressentido, perdido ambição. Fica só na direcção da Experimenta, cuja rede curatorial se mantém activa, mas não só na Experimenta, com cargos no CCB, na Casa da Música, no Art Algarve. A bienal de 2007 não se realiza por motivos financeiros, mas em 2009 regressa, como destaca Moura Guedes, “muito forte”. É quando Alice Rawsthorn se estreia na bienal, por exemplo, e considera “a qualidade do conteúdo muito elevada” e as exposições “ambiciosas, intrigantes e apresentadas em espaços pela cidade de forma bela”. O tema: It’s About Time.
É nessa altura que a Experimenta propõe a reabilitação para o Jardim de Santos, objecto de protocolo com a câmara, que nunca avançou; o projecto da ponte pedonal e ciclável sobre a Segunda Circular, da Fundação Galp, foi lançado em 2009 e concretizar-se-ia em 2015, não sem alguma polémica. São projectos com parceiros da bienal e numa cidade que há uma década colhia os seus benefícios. “Acredito que esse impacto se tenha alterado e que a bienal tenha tido outro tipo de importância [nos últimos anos]”, diz Pedro Gadanho, mas “agora que Portugal está na moda é fácil achar que foi sempre assim. Muita gente da esfera cultural não vinha cá e hoje até cá vive, como o Philippe Starck, que a primeira vez que veio a Lisboa foi para falar na ExperimentaDesign”. Volta este sábado ao CCB para falar no encerramento da bienal.
Cultura vs. negócio
Em 2011, o fim da bienal já pairava. A sua directora manifestava cansaço com o modelo e queria apostar na vertente negócio — será esse, aliás, o futuro da associação já em 2018, na área da consultoria e à imagem do que desenvolve há anos com empresas como a Amorim ou recentemente com associações como a Assimagra. Há seis anos, a discórdia entre a presidente e alguns associados culmina numa assembleia geral da qual a revista Visão faria eco em 2014, num debate sobre os problemas financeiros e de orientação da Experimenta. Frederico Duarte identifica um ponto de viragem: “A crescente dependência da rede de contactos pessoais [da presidente da associação, sem partilha da] orientação curatorial ou estratégica.”
“As decisões não são todas tomadas por mim”, riposta a presidente da Experimenta, que tem “menos gente na equipa fixa em Portugal, mas tem uma rede internacional de parceiros, de think tankers, muito maior do que alguma vez teve”. Reconhecendo a ausência de um grupo curatorial, justifica-o: “Essas pessoas têm imenso valor e só conseguimos mantê-las connosco se as conseguirmos pagar. E deixámos de o conseguir fazer.”
Por um lado, a Experimenta “gerava um grande número de empregos, de apoio à criação”, diz Carla Cardoso, hoje directora executiva da bienal Molda das Caldas da Rainha. Mas, por outro, alguns projectos de consultoria não eram coerentes com a actividade da associação, defende, que “fazia dumping, uma concorrência desleal às próprias agências de design”. Guta Moura Guedes orgulha-se de ter mostrado e gerado “maioritariamente projectos novos”. E Stefan Sagmeister explica como a Experimenta foi “essencial” para o seu atelier, “acabando por colaborar em vários grandes projectos” com instituições e empresas portuguesas — como o rebranding da EDP em 2011.
Moura Guedes defende as suas decisões com “enorme tranquilidade”. Cita o contexto económico e social diferente do de 1998 para a bienal. “O facto de se ter aproximado da economia e do negócio nunca lhe retirou o outro lado da investigação ligada à cultura ou da disciplina per se”, diz. Acrescenta que “a bienal começa muito inspirada por um modelo ligado às artes plásticas e veio a redesenhar-se, trazendo a matriz do design, que faz a ponte real entre a economia e a componente cultural e artística”. Garante ter conseguido “manter o projecto vivo sem perder a matriz”.
Nas últimas edições, a bienal continuou com exposições, conferências e comunicação. Em 2013, estendeu-se ao Porto e a Matosinhos, antecipando involuntariamente a sua sucessão com a Porto — Design Biennale. “Em 1998 não se falava de Lisboa como um grande melting pot de criatividade e a ExperimentaDesign foi a primeira a fazer isso. Ao longo dos anos deixámos de ser os únicos e ainda bem”, frisa Guta Moura Guedes. “É um legado muito importante.” A decisão de pôr fim à bienal foi difícil, dizia ao PÚBLICO em Junho, mas o entusiasmo perdera-se e a vertente negocial que outros criticam sobreveio.
A ExperimentaDesign é o projecto emblemático de duas décadas de maior visibilidade para o design em Portugal como pivot cultural e não só mais-valia industrial. Não tinha a função de divulgar o design português, mas fê-lo a espaços e chegou para “inspirar e enriquecer a comunidade de design portuguesa”, crê Frederico Duarte, embora a sua missão não esteja ainda cumprida. “Ajudou a aumentar o conhecimento sobre o design e a arquitectura portuguesa”, diz Rawsthorn. Sagmeister, que não conhece “outro encontro de design de dimensões e qualidade comparáveis”, não hesita em definir a bienal como “um marco”.