Como trumpificar um país
Por trumpificação quero dizer isto: um alastrar de vozes populistas e de propostas demagógicas à direita, seguidas por respostas primárias e distracções idiotas à esquerda.
Peguemos em três temas que estiveram presentes nas notícias desta semana para vermos como se pode, aos poucos, ir lançando as sementes da trumpificação da cena política nacional. Por trumpificação quero dizer isto: um alastrar de vozes populistas e de propostas demagógicas à direita, seguidas por respostas primárias e distracções idiotas à esquerda. Cada um fala para a sua base de apoio, e no meio fica um buraco enorme, onde a maior parte das pessoas vagueia, sem se sentir representada.
É verdade que esta trumpificação é mais visível ao sol de Agosto, com o país político a banhos – não havendo muitas notícias, é mais fácil ocupar o espaço mediático com parvoíces. Mas o mecanismo está aí, e tem como consequência a abertura de um fosso social e tecnológico entre aqueles que acham que colocar-se ao lado do povo é apelar aos seus instintos mais básicos, e entre aqueles que estão tão obcecados com livros de actividades para meninas e para rapazes que acham que o mundo e os seus problemas se resumem à última indignação no microcosmos das redes sociais.
Comecemos pelos demagogos de direita, e muito em particular pelo mini-Trump de Loures, que está transformado na verdadeira estrela da campanha autárquica: André Ventura. Primeiro ponto: Ventura é esperto e aprendeu com Trump que a melhor forma de assaltar o espaço público é dizendo coisas que 1) choquem a elite mediática e 2) vão ao encontro das inseguranças das pessoas. Fazendo isso, é um piscar de olhos até se passar de anónimo candidato para líder do feed do Facebook. E ele bem se esforça por dar nas vistas: em poucas semanas já se atirou aos ciganos, já defendeu a prisão perpétua, já propôs transformar a polícia municipal num “exército de protecção” de Loures, e já disse que “não lhe choca” que a pena de morte seja aplicada a “terroristas” e a “pedófilos homicidas”. Gosto sobretudo da invocação deste último grupo, certamente vastíssimo, dos “pedófilos homicidas”. A coisa tem sido tal que até o líder do PNR veio protestar por Ventura lhe estar a roubar o discurso político por “puro oportunismo eleitoral”. Reparem bem: José Pinto-Coelho teme vir a ser ultrapassado em reaccionarismo pelo candidato autárquico do PSD a Loures.
Outra ideia populista foi avançada por Marques Mendes: a de que as pessoas condenadas por crimes de corrupção, branqueamento de capitais ou fraude fiscal deveriam ser “impedidas por lei” de serem candidatas a eleições por um período “de dez anos”. Para além da muito duvidosa constitucionalidade de tal medida (ela esbarra de frente com os direitos, liberdades e garantias da participação política), aquilo que se pretende é empurrar para o domínio da lei o que deve ser uma decisão informada dos cidadãos. Eu terei muita vergonha se Isaltino Morais voltar a ser eleito em Oeiras, mas impedir a sua vitória é uma tarefa que cabe aos eleitores, e não aos tribunais. A Justiça não existe para corrigir a má formação política e a falta de exigência ética do povo português.
Ora, perante estas propostas tontas da direita, o que faz a esquerda? No caso dos ciganos, saca logo da pistola da xenofobia, não admitindo discutir se há ou não problemas com a integração da comunidade cigana em Loures – ou seja, joga o jogo de Ventura. No caso de Mendes, não teve sequer oportunidade para discutir: a esquerda perdeu-se nos labirintos dos cadernos de actividades para rapazes e meninas, e o tempo, infelizmente, não dá para tudo. E assim se vai trumpificando um país.