Contratação Pública: o fim de uma prática indigna?
Esperamos, pois, que seja desta que o status quo mude, dignificando-se esta área tão importante para o sector público e privado, nacional e internacional.
Quem acompanha o tema da contratação pública ou, se quisermos, das compras públicas, conhece bem a controversa questão do denominado preço anormalmente baixo.
No fundo, e em síntese, quando um preço de uma proposta é considerado anormalmente baixo, tal proposta pode ser excluída se não for devidamente justificada pelo concorrente que a apresenta a concurso.
A lógica subjacente à exclusão de propostas com preços anormalmente baixos é facilmente entendível: uma proposta cujo valor se situa, por exemplo, abaixo do respectivo preço de custo, é, regra geral, uma proposta anómala e um embuste (fala-se, grosso modo, em dumping).
Essa proposta anómala é nociva a vários níveis: oferece menos garantias de que os contratos públicos sejam cumpridos com a qualidade pretendida, propicia a degradação das condições de trabalho e origina, não raro, graves ilegalidades, como por exemplo, pagamentos não declarados e a inerente fraude fiscal.
Todos perdem, com excepção do prevaricador, que, com ardil, conseguiu ludibriar as entidades adjudicantes (em geral, o Estado, mas a problemática é transversal à globalidade dos entes públicos).
Acontece que, não obstante a lei (o Código dos Contratos Públicos) tenha imanente esta filosofia, ou seja, a de evitar propostas de preços anormalmente baixos, que só devem ser admitidas quando existam explicações plausíveis (estribadas, por exemplo, na originalidade da obra, dos bens ou dos serviços a contratar), foi criada uma corrente jurisprudencial nos últimos anos permissiva daquele logro.
Com efeito, há vários acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA) que, ancorados em princípios de indiscutível mérito e com consagração constitucional, têm vindo a permitir que vinguem propostas de preços anormalmente baixos, mesmo quando tais propostas foram alvo de deliberações de exclusão por parte dos júris dos concursos, que não aceitam, por injustificadas, as explicações que pretensamente fundamentam aqueles preços excepcionais.
Em concreto, tem sido entendido, já em diversas ocasiões, que o princípio da liberdade de iniciativa económica privada justifica um preço abaixo do respectivo custo e que compete a cada empresa, por exemplo, por estar interessada em conquistar determinado cliente ou quota de mercado, estipular o preço que melhor lhe aprouver (designadamente, a coberto dos convenientes “descontos comerciais”).
Teoricamente, a tese faz sentido, mas tem gerado, como se previa, todos os problemas já acima enunciados.
É, na realidade, um salvo-conduto para a ilegalidade e, consequentemente, para as inenarráveis sequelas sociais tão próprias do “capitalismo selvagem”.
Ora, recentemente, o mesmo STA decidiu, num recurso de revista (com o voto de vencido de um dos juízes conselheiros e ainda não transitado em julgado, isto é, ainda não definitivo), enveredar por um caminho diferente e que pode constituir o início de uma pequena grande revolução no seio da contratação pública.
Com efeito, por acórdão datado de 12 de Julho de 2017, aquele alto Tribunal considerou que não somente os júris dispõem de discricionariedade técnica (na qual, por regra, os tribunais não se devem imiscuir) para validar as explicações apresentadas pelos concorrentes relativamente a propostas de preços anormalmente baixos, como também que é admissível que num concurso se estabeleça, por exemplo e como foi o caso, que uma Recomendação da Autoridade para as Condições do Trabalho, que fixa preços mínimos de prestação de serviços no sector da segurança e vigilância privada, pode ser adoptada como referencial para se estabelecer se um preço é anormalmente baixo ou não.
Como referi e sublinho, este aresto ainda não se pode considerar definitivo, mas é uma forte pedrada no charco em que se transformaram várias actividades que integram os mercados públicos e cujos operadores (felizmente, alguns resistem) adoptam comportamentos falazes, a coberto de uma lei pouco clara e de alguns julgadores surpreendentemente menos criteriosos.
Esperamos, pois, que seja desta que o status quo mude, dignificando-se esta área tão importante para o sector público e privado, nacional e internacional.
E já agora, que o novo CCP, que se avizinha, reforce este novo caminho jurisprudencial.