Campo Pequeno, “o Kremlin de Lisboa”, faz 125 anos
A praça que, em tempos, fez crescer a cidade para lá dos seus arrabaldes, tornou-se mais que um espaço de toureio. O Campo Pequeno tem política e morte gravadas nas paredes. Mas teve "jogo de cintura" para sobreviver à passagem do tempo.
Um “casarão bárbaro” com um “cenográfico luxo mourisco”. A descrição data de 1920 e o seu autor, D. João de Castro, adjectivava assim em A Comédia de Lisboa a praça de touros do Campo Pequeno. O “casarão” que já há duas décadas se erguia ali, junto à Avenida da República, pintado de amarelo e grená, ia buscar o “luxo mourisco” ao estilo neo-árabe, quase único em Portugal, com as cúpulas semelhantes às das mesquitas, e à cor dos tijolos que lhe dão forma e que levou os espanhóis a chamar-lhe “o Kremlin de Lisboa”. A forma sobreviveu ao tempo, mas a praça que foi construída para ser dedicada aos touros, é hoje muito mais que um espaço de toureio.
No dia em que cumpre 125 anos, conta-se a história de uma casa que soube ter o “jogo de cintura” necessário para passar por três séculos, quatro regimes políticos, acabando por ser palco de uma intensa actividade política e cultural, cuja história se funde, invariavelmente, com a do país.
Quem nos guia por estes 125 anos de estórias é o relações públicas Paulo Pereira. A praça de touros que antecedeu a do Campo Pequeno estava localizada no Campo Santana nas primeiras décadas do século XIX. Em 1889, o município de Lisboa cedeu um terreno na zona do Campo Pequeno, à Casa Pia, que ainda hoje detém a exclusividade de organização de corridas de touros, para a construção de uma nova praça. Por força das dificuldades financeiras, a instituição acabou por ceder à Empreza Tauromachica Lisbonense os direitos de construção e de exploração do recinto. A obra havia de ser inaugurada a 18 de Agosto de 1892 e terá custado 161 mil réis.
Ainda hoje o Campo Pequeno “contribui com 700 mil euros anuais” para a Casa Pia, sendo “uma das suas principais fontes de financiamento”, lê-se no site do espaço.
De facto, o Campo Pequeno foi construído para ser uma praça de touros, mas o projecto, da autoria do arquitecto Dias da Silva, já previa “que fosse adaptado e explorado noutras vertentes”, explica Paulo Pereira.
O Campo Pequeno foi inaugurado durante o reinado de D. Carlos, o Diplomata. Cognome que lhe assenta como uma luva, por ter governado durante anos de grande actividade diplomática e em que a praça serviu como uma das salas de visitas da cidade em recepções de chefes de Estado estrangeiros, como Eduardo VII de Inglaterra, Afonso XIII de Espanha, o Kaiser Guilherme II da Alemanha e o Presidente da República francesa, Émile Loubet. Um dos pontos de paragem obrigatória era o Campo Pequeno com a realização de uma corrida de touros, "sempre com muito fausto”, conta Paulo Pereira,.
Falamos dos primeiros anos da praça. Entretanto, a República é implantada a 5 de Outubro de 1910. Doze dias depois, há uma corrida comemorativa, com um cartaz “de cavaleiros que eram conotados com o regime” republicano, desde logo membros da família Casimiro, antepassados da actriz Mirita Casimiro. E fazem-se corridas de homenagem a chefes de Estado portugueses como António José de Almeida ou Sidónio Pais.
“A política sempre se projectou dentro do Campo Pequeno”, nota. Como quando, em 1936, nos primeiros anos do Estado Novo, se realiza ali o comício que daria origem à Legião Portuguesa. Ou quando o chefe de Estado espanhol, Francisco Franco, teve em sua honra uma corrida de touros em Outubro de 1949. Já nos anos 50, foi o imperador da Etiópia, Haile Selassie, que passou pelo Campo Pequeno.
Aplausos para Spínola, vaias para Vasco Gonçalves
Chega o 25 de Abril, e no fervilhar do pós-revolução, o poder continua a passar por ali. A 26 de Setembro de 1974, comparecem numa corrida de touros o então Presidente da República, António de Spínola, e o primeiro-ministro, Vasco Gonçalves. O primeiro foi aplaudido; o segundo, vaiado.
“José João Zoio abriria a certa altura perante os olhos do público um dos cartazes verdes que a reacção fascista espalhou aos milhares pelo país a convocar uma manifestação ‘contra os extremismos’”, lê-se no Diário de Lisboa de 27 de Setembro. A manifestação de que fala refere-se à da “maioria silenciosa” que ocorreria daí a dois dias. Aquela corrida, num local e num evento que claramente não eram neutros, por se associarem a um desporto das elites, seria um teste à manifestação que acabaria por sair gorada e por atirar Spínola à renúncia.
Associada ao Campo Pequeno, fica a frase, que tem tanto de célebre como de polémica, de Otelo Saraiva de Carvalho quando, a 14 de Junho de 1975, disse aos microfones da Rádio Renascença: “Teria sido melhor se, em Abril de 74, encostássemos à parede ou mandássemos para o Campo Pequeno umas centenas ou uns milhares de contra-revolucionários, eliminando-os à nascença”. Otelo não a assume como sua. Chegou mesmo a dizer, em entrevista ao Diário de Notícias, que o que tinha afirmado tinha sido: “Oxalá que nós não tenhamos de meter no Campo Pequeno os contra-revolucionários antes que eles nos metam lá a nós”.
Mas a tauromaquia sempre soube sobrepor-se ao espectro político, porque “é capaz de ser a expressão artística mais amada e mais odiada da esquerda à direita”, admite o responsável do Campo Pequeno.
A praça acabaria por receber, a 16 de Novembro de 1975, uma corrida de apoio à reforma agrária. “As ganadarias estavam ocupadas maioritariamente por pessoas afectas ao Partido Comunista Português. Houve que ter esse jogo de cintura”, explica. O espaço acabaria por ficar conhecido pelos espanhóis como “o Kremlin de Lisboa” por causa dos torreões, “o que também exerceu um certo fascínio nos comunistas portugueses que aqui organizaram comícios e congressos já depois do 25 de Abril”, conta.
Os partidos, da esquerda à direita, passaram todos por ali, ainda durante o PREC e depois na fase de estabilização democrática que se seguiu. Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral foram alguns dos protagonistas de comícios realizados ali na praça de touros. “O Campo Pequeno era o grande teste dos partidos políticos e das coligações. O primeiro ponto do barómetro da implantação dos partidos começava nas secções de bairro e, depois, faziam o teste de popularidade”, explica: primeiro, no Pavilhão Carlos Lopes, depois no Campo Pequeno. “Conforme corressem as coisas”, podiam seguir depois para o Estádio 1.º de Maio ou para a Alameda, conta.
“Tudo o que era espacinho eles ocupavam. A arena ficava lotada e, lá fora, ficavam quase outros tantos”, lembra, explicando que na altura a praça tinha capacidade para mais de oito mil pessoas.
Já depois das obras de reconstrução, o PCP fez ali dois congressos, a CGTP fez ali reuniões e o espaço já foi palco de protestos organizados. Álvaro Cunhal foi ali homenageado numa praça que se “cobriu de vermelho” no dia em que se assinalou o centésimo aniversário do histórico líder do PCP. Também ali, Jerónimo de Sousa foi reeleito secretário-geral do PCP no congresso do partido a 30 de Novembro de 2008.
As corridas de touros tinham muitas vezes um carácter de beneficência, conta Paulo Pereira. E há uma que fica “tristemente” ligada ao Campo Pequeno. A 16 de Outubro de 1966, numa corrida para o Orfanato Escola Santa Isabel, de Sintra, um dos cavaleiros é colhido mortalmente. Joaquim José Correia, conhecido como “Quim Zé”, e que fazia 21 anos nesse dia, deixou “um futuro auspicioso” na arena.
“Eu vi essa corrida. Foi uma coisa... foi um trauma para o país. Na altura, os touros tinham uma visibilidade na imprensa generalista que não têm hoje em dia. Foi primeira página durante três dias”, recorda.
A praça, que também foi palco de corridas de touros de morte entre 1927 e 1933, viu três cavaleiros e dois forcados perder a vida na arena. Além de Quim Zé, Fernando Oliveira foi colhido em 1904. José Varela Crujo teve o mesmo destino em 1983, acabando por morrer no Natal de 1987, após quatro anos e meio em coma e os forcados João Raiva e Pedro Belacorça, perderam a vida em1953 e 1998.
"Isto é uma sala de espectáculos"
Quem entra pelos corredores onde em dia de corrida saem os touros disparados para a arena, que se estende num redondel de 80 metros de diâmetro, conta quatro pisos com bancadas, galerias e camarotes dispostos em círculo, com arcos redondos ou em ferradura, igualmente islamizantes no estilo, de que é exemplo o da porta principal (pode ver isso em detalhe no vídeo 360º que o PÚBLICO ali fez).
Depois de um século de história, a praça esteve praticamente votada ao abandono nos anos 90. Foi, então, proposto um programa de recuperação que previa, além do restauro do edifício, obras nos espaços envolventes, que ficaram a cargo da Sociedade de Recuperação Urbana do Campo Pequeno (SRUCP). Orientada pelo projecto do arquitecto José Bruschy, a recuperação da praça terá custado cerca de 80 milhões de euros.
O Campo Pequeno esteve encerrado ao público entre 2000 e 2006, ano em que reabriu com cara lavada. Isto “permite encarar o Campo Pequeno do século XXI como um espaço multiusos, que agrega um pólo de cultura e lazer e comércio em Lisboa”, diz Paulo Pereira. Depois das obras, o espaço foi transformado em sala de espectáculos – do boxe e wrestling, a concertos, espectáculos para crianças ou jantares de empresas -, há restaurantes e bares com esplanadas, um museu, um centro comercial com cinema e um parque de estacionamento com 1250 lugares. E o metro ali ao lado.
No edifício, classificado como Imóvel de Interesse Público, foi também construída uma cobertura amovível com vários gomos móveis, em vidro, que abrem e fecham consoante a necessidade, e foram instaladas cadeiras em todas as bancadas, o que reduziu a capacidade da arena para 6.500 lugares.
Em Maio de 2015, no segundo piso do torreão principal da praça, abriu portas o museu taurino do Campo Pequeno, que conta com um acervo de mais de mil peças, entre fotografias, trajes de forcados e cavaleiros. Desde a abertura, recebeu cerca de 42 mil visitantes, de 114 países.
De facto, nesta segunda vida do Campo Pequeno, os eventos tauromáquicos representam uma pequena parte dos espectáculos que ali decorrem. Nos últimos 11 anos, a praça recebeu 876 espectáculos e quase 2,7 milhões de espectadores. Espectáculos taurinos, foram 197, e receberam cerca de 826 mil pessoas. No ano passado, a praça recebeu 63.291 pessoas em 14 espectáculos. Esta temporada, o redondel vai acolher 15 corridas de touros.
Questionado sobre se se justifica continuarem a existir espaços dedicados à tauromaquia, quando olhamos para os dados da Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), que indicam que o número de espectadores de espectáculos tauromáquicos em Portugal diminuiu para quase metade em nove anos (passou de 620 mil para 362 mil), Paulo Pereira é peremptório: “É óbvio que se justifica senão não estávamos aqui. É uma tradição. Eu liguei aqui a tauromaquia a uma série de eventos políticos e sociais. Isto marca a história”.
Se agora vem menos gente aos touros é porque “não há figuras”, num país onde “há mais oferta cultural”. Paulo Pereira sublinha que “a tauromaquia tem resistido pela força” e que “assim vai continuar”. Para celebrar estes 125 anos, esta sexta-feira há um “espectáculo alargado” com uma corrida de touros e com as actuações dos fadistas Nathalie e Camané. Também os CTT criaram um selo comemorativo para celebrar a data.