O caos dos Mão Morta, o amor dos Future Islands e a realidade de Kate Tempest no primeiro dia de Paredes de Coura

Num dia em que sem surpresas os Future Islands foram a banda preferida do público, surpreenderam o psicadelismo dos BEAK> e a spoken word de Kate Tempest. O festival não correu tão bem para o lado dos The Wedding Present.

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Kate Tempest PAULO PIMENTA
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Future Islands PAULO PIMENTA
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Mão Morta PAULO PIMENTA
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BEAK> PAULO PIMENTA
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The Wedding Present PAULO PIMENTA
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Escola do Rock PAULO PIMENTA

São 4h18 da manhã de um dia qualquer na história ficcionada de sete pessoas que podiam ser reais. Todas elas moram na mesma rua, mas ninguém se conhece. É àquela hora exacta, às 4h18 da manhã, que todos se cruzam, na mesma rua onde vivem, e se vêem pela primeira vez. Em Paredes de Coura são 2h e é Kate Tempest que se cruza pela primeira vez com o público português para contar sete fragmentos da vida destas sete personagens no palco por onde também passaram os mais do que vivos Mão Morta e os esperançosos Future Islands, que na primeira noite desta 25.ª edição tiveram o festival do lado deles. Se os Mão Morta agitaram o público e os Future Islands espalharam esperança, Kate Tempest surpreendeu a plateia com a simplicidade e a crueza da palavra.

No dia da abertura do Vodafone Paredes de Coura, foi no palco principal que se concentraram todas as actuações. Em ano de celebração de data redonda, a Escola de Rock serviu de campainha de entrada para o público que ia chegando ao anfiteatro relvado a conta-gotas. Cerca de 20 mil pessoas já estavam por Coura. Nem metade estaria ainda no recinto. O projecto criado por Nuno Ferros, que em 1993 fazia parte do grupo de fundadores do festival, passou a pente fino os cartazes de todas as edições para seleccionar os temas das bandas mais icónicas que por lá passaram. Dezenas de músicos em palco, que em Dezembro de 2016 passaram uma semana na vila em residência artística, guiaram os mais saudosistas por uma viagem ao passado com temas de Pixies, Arcade Fire, dEUS, Queens of the Stone Age, Nine Inch Nails ou Motörhead.

Ainda não tinha caído a noite e entravam os The Wedding Present, que horas antes tinham tocado no telhado dos balneários junto ao Palco Jazz na Relva num dos concertos-surpresa das Vodafone Music Sessions. Em ano de efemérides e de homenagens, tocaram na íntegra George Best, o primeiro álbum, lançado em 1987 – o disco que levou o nome do avançado norte-irlandês ex-glória do Manchester United foi considerado pela NME um dos melhores de sempre. No entanto, o concerto dos britânicos, agarrados ao passado de bandas como os Buzzcocks, não é momento que vá ficar na história de Coura.

Os anos não passam pelos Mão Morta

Adolfo Luxúria Canibal solta gritos de agonia e desespero. Contorce-se em movimentos descoordenados e de aflição. Cai no chão de olhos fechados. A música termina, o concerto também e é lá que continua, junto às colunas da munição de palco. A banda aproxima-se e ajuda o vocalista a levantar-se. Está tudo bem, Adolfo está em forma e o resto da banda idem. Tocavam Bófia, uma das músicas fora do alinhamento de Mutantes S.21 que apresentaram no festival para assinalar os 25 anos da edição do álbum.

Uma hora antes, Adolfo entrara em palco em passo lento e arrastado. Durante o roteiro pelas cidades do disco, percebe-se que tentava apenas fintar o tempo. Aos primeiros acordes de Marraquexe é notório que não estão lá apenas para cumprir calendário. Dão a volta ao mundo e fica a ideia de que o tempo não passa pelos Mão Morta.

Vão a Paris, com um riff arrastado e encorpado (arriscamos dizer que é um tema que não anda longe do espectro do doom metal). Mas os Mão Morta não são metal, nem são outra coisa qualquer que não eles mesmos. São rock & roll, por vezes melancólico e taciturno, outras vezes caótico. E foi no caos que se moveram durante o alinhamento: é o caos que lhes apetece experimentar, para lá deixarem a agressividade e saírem revigorados. As projecções no fundo do palco, com ilustrações ora sinistras, ora de cariz mais erótico ou mesmo pornográfico, ora mais abstractas, serviam de suporte ao alinhamento.

E é em Budapeste que param para a reacção mais efusiva do público, já o concerto estava perto do fim. Com um percurso que se cruza com o do festival – são a banda que mais vezes lá tocou –, os Mão Morta pedem ao público que preste uma homenagem à organização do evento e entoa-se em coro o Parabéns a você.

Kraut e esperança

Antes de entrar em palco a banda que teve a melhor resposta por parte do público, os Future Islands, tocaram os BEAK>. A banda do baterista Geoff Barrow, um dos fundadores dos Portishead, foi a primeira surpresa da noite. Os britânicos que contam ainda com Billy Fuller, baixista de Robert Plant, e Will Young (Moon Gangs), este alternando a guitarra com o sintetizador, conseguiram encolher o recinto à dimensão de uma sala mais intimista. Foi uma viagem psicadélica com ponto de partida no krautrock e alicerçada num baixo que serviu de guia para os temas adornados por uma bateria criativa e intrigante e um sintetizador dissonante que por vezes se perde para outra dimensão, muito além da secção rítmica. Em constante comunicação com tiradas de humor caustico e carregadas de sarcasmo, conseguiram dar a volta ao público, que a meio do set já estava do lado deles.

Muito menos tiveram de se esforçar os Future Islands, aos quais bastou aparecer em cena para ouvirem o primeiro aplauso. Do início ao fim do concerto houve sintonia entre a banda e o público que enchia o anfiteatro de Paredes de Coura. Dedicaram-se musicas aos avós, aos amigos, ao público, às outras bandas, e espalharam-se mensagens de esperança e de amor. O vocalista Samuel T. Herring consegue tomar conta do palco quase sozinho. Entrega-se com dedicação e é retribuído pelo público. Entre músicas, houve momentos em que o agradecimento era entregue no silêncio com o simples gesto de levar as mãos ao peito.

O synthpop dos norte-americanos é envolvente quanto baste. Embora nem sempre seja fácil de ouvir a voz de Herring, que vai alternando entre o registo monocórdico e o gutural. São as bases hipnóticas de sintetizador a segurar os temas, com linhas de voz que não primam pela criatividade. Ainda assim, a posição de banda mais ovacionada da noite ninguém lhes tira.

Gente comum

A seguir, já perto das 2h, Kate Tempest dava início ao seu alinhamento, todo ele orientado para o álbum Let them Eat Chaos, de 2016. Seria simples catalogar o que a britânica faz como hip-hop. Estão lá os beats, é certo, tocados ao vivo por uma banda, e está lá o flow, mas o que apresenta vai mais além. É spoken word com batida carregada de groove. É negro, é comovente, é agressivo e é real. Real como as histórias de ficção que diz (porque não canta) em álbum e em palco. São histórias de gente comum, com problemas de pessoas comuns e preocupações do tamanho do mundo.

Há uma acção que se passa na mesma rua, sete vizinhos que não se conhecem e um horário que corresponde à altura em que se vêem pela primeira vez: 4h18 da manhã. Há uma tempestade e os sete vizinhos são obrigados a sair de casa. É aí que se encontram nessa rua. É o ponto de partida para se falar da Europa, de conflitos, do isolamento ou da indiferença.

O público escuta. Fica preso à mensagem que não é mais do que um retrato não muito diferente da vida de cada um. Há momentos de silêncio, logo quebrado por picos de exaltação quando o receptor se identifica com a mensagem. O meio é Kate Tempest, uma virtuosa do flow. Aguenta-o mais de um minuto sem beat. Destaca-se a palavra, crua e despida de artifícios que lhe tirem o protagonismo.

Não é por isso que a base instrumental deixa de ter um papel fundamental. Pinta na perfeição as palavras escritas e ditas por Kate. São ritmos intrincados, em contratempo e com um baixo bem baixo. É uma base dançável que apoia o cerne de todo o trabalho de Kate: a palavra. E é essa a semente que quer plantar no público. Antes de se ir embora diz que se houver alguém que tenha recebido a mensagem já valeu a pena estar ali.

Notícia corrigida às 18h05 rectificando o nome do vocalista dos Future Islands

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