Por aqui a destruição faz o seu caminho
O tempo consome figuras e os espaços, tudo a desaparecer em A Vida de uma Mulher. Passa-se no século XIX, adapta Guy de Maupassant, mas afinal são impressões de uma vida igual à nossa: não há épocas para a violência do mundo.
A passagem não era evidente, nem é o que alguns esperariam. Depois de um dos grandes filmes sobre a nossa época, A Lei do Mercado (2015), um filme de época, o século XIX. Depois de um filme sobre a exposição ao mundo (a obra de um “cineasta dos sentimentos” expunha-se dessa forma ao social, ao político), o regresso ao interior: A Vida de uma Mulher (2016). Depois de um filme sobre o desaparecimento do Estado social, substituído por uma entidade que trabalha a desumanização, a adaptação cinematográfica do primeiro romance de Guy de Maupassant, Une Vie, publicado em 1883 (Uma Vida, Ed. Europa América).
À superfície os contrastes entre os dois últimos filmes de Stéphane Brizé parecerão definidos – o destino de ambos nas bilheteiras francesas foi aliás tão contrastante que isso pode levar a uma qualquer conclusão definitiva ou exemplar sobre o que os divide.
Mas pode ser que o desempregado que tenta regressar ao mundo do trabalho em A Lei do Mercado (Vincent Lindon) e a rapariga de educação esmerada na Normandia rural de 1819 (Judith Chemla em A Vida de uma Mulher: o “príncipe encantado” que lhe é apresentado, o casamento, um filho, as infidelidades do marido, a derrocada sentimental e patrimonial...) sejam personagens da mesma família. São seres violentados pelo mundo. Brizé não só os acompanha nessa viagem de embates trágicos, como desposa o seu destino. Mas outra coisa os liga inevitavelmente: tendo lido a obra de Maupassant há vinte anos, a ela regressando ao longo dos anos para reafirmar a sua ligação à personagem feminina, Brizé só concretizou a adaptação cinematográfica com o sucesso de A Lei do Mercado.
A proximidade com a personagem de Jeanne, é assim que ela se chama, é fusional em A Vida de uma Mulher: uma intimidade que é táctil e que vai anulando o que é circunstancial — por exemplo, o guarda-roupa, por exemplo os sinais do século XIX, os espartilhos do “filme de época”... – para reter uma súmula essencial e sensual dos actos e feitos do embate com o mundo. Nesse sentido, A Vida de uma Mulher até é menos filme sobre uma época do que A Lei do Mercado, porque a aprendizagem, a iniciação que decorre, é uma experiência evocativa que está próxima da nossa intimidade. São impressões de uma vida igual à nossa, não há épocas para a violência do mundo.
Através do trabalho de som, por exemplo, Brizé tira as datas a um filme que é ouvido como matéria de hoje. Através de uma progressão em elipses, que é como avança a noite de derrocada que é este longo flashback pela vida de Jeanne, Brizé e a sua co-argumentista Florence Vignon desestruturam a linearidade de Maupassant. Em duas horas passam 30 anos de vida de Jeanne, dos 17 aos 47 anos. O tempo consome as figuras e os espaços, tudo desaparece em A Vida de uma Mulher. Mesmo os actores: aqui ficaram as marcas da sua passagem pelo filme. Claustrofóbico círculo, este, porque a síntese biográfica de Jeanne encerra também a experiência do espectador de um filme: estamos sempre no passado, no que já acabou.
A Vida de Uma Mulher é um projecto anterior a A Lei do Mercado (2015). Mas foi concretizado depois e não posso deixar de lhe perguntar: que influência teve o confronto com espaço público e social do filme anterior?
Não sei de onde vem exactamente a sua pergunta, mas sei que, sim, sem A Lei do Mercado, sem uma forma de liberdade que adquiri e que foi arrancada à Lei do Mercado, eu não teria conseguido fazer A Vida de Uma Mulher.
É verdade, o projecto é anterior à Lei do Mercado. Comecei a escrevê-lo em Junho de 2012. Há quatro anos e meio. Houve desenvolvimentos, foi colocado entre parêntesis, mas dois anos depois havia um argumento escrito a circular à procura de dinheiro. Passou algum tempo, houve entretanto A Lei do Mercado e em 16 meses a escrita, a rodagem, a montagem desse filme, houve Cannes [prémio de interpretação masculina a Vincent Lindon] e tudo isso. Foi um filme em que tive o sentimento de adaptar o utensílio cinematográfico às minhas mãos. Estou muito contente com os outros filmes, mas o manuseamento do utensílio não estava ainda adaptado à minha mão. Foi com A Lei do Mercado que se passou algo, porque havia uma economia diferente, modesta mas escolhida, as coisas fizeram-se de outro modo. E foi assim que ao sexto filme [Le bleu des villes (1999), Je ne suis pas là pour être aimé (2005), Entre adultes (2006), Mademoiselle Chambon (2009), Quelques heures de printemps (2012)] pela primeira vez na vida tive o sentimento de a minha mão ter a marca do utensílio.
Há outra coisa, que parece pouca mas não é, é mesmo enorme, psicologicamente: arrancar a câmara ao tripé. Penso que foi aí que me aproximei de algo mais íntimo, de uma vibração de mim nos filmes. Sou speedado e os meus filmes são mais para o lento. Havia algo de mim que não estava ainda neles e que passou a estar a partir do momento em que tirei a câmara do suporte e a coloquei no ombro.
A Vida de Uma Mulher foi todo filmado com a câmara ao ombro.
Numa conversa na altura de A Lei do Mercado, disse: “Vincent Lindon c’est moi”. Diria o mesmo desta personagem?
Sim, não sei falar de outra coisa a não ser de mim. Não é a minha história, não é onde habito, mas é a minha relação com o mundo. É o meu material. Como alguém utiliza mármore ou argila para fazer a sua escultura, a minha matéria é a minha relação com o mundo. Há uma história que existia já, a de Maupassant, eu teria adorado escrevê-la. Passa-se no século XIX, há guarda-roupa, etc., mas isso são contingências. Para mim não é um livro sobre o século XIX, é uma obra intemporal e universal. O coração do livro não é a condição da mulher no século XIX, até porque a personagem vem de uma família progressista, muito rousseauista, que segue o Iluminismo, o pai é mesmo alguém habitado por uma forma de modernismo da época. Não me interessa a condição da mulher no século XIX, interessa-me a forma como o livro fala de uma relação com o mundo.
O que me toca profundamente em Jeanne (Judith Chemla) é que é alguém que atravessa a vida e não sabe, não quer ou não pode abandonar o perfume do paraíso da infância. Fica agarrada a isso, a uma alta ideia do Homem — que o Homem, com H, é bom. Pelo contrário, o Homem é alguém que mente, para se preservar tem à disposição utensílios que podem ser tão brutais como a natureza, mas ela acredita numa espécie de beleza muito imatura do mundo. E, apesar das pancadas que recebe, é incapaz de se decidir por adquirir armas, algumas armas de lucidez. Isso torna a personagem incrivelmente bela e poética, porque é alguém que procura algo de absoluto. Mas ao mesmo tempo o lugar dessa luz é o lugar da tragédia. Isso perturba-me, de forma muito orgânica, porque certamente um pedaço da minha história teve que ver com isso, com a descoberta do mundo. Senti-me próximo desta história.
Então os seus dois últimos filmes são filmes em que o confronto, brutal, com o mundo se faz — isso é o que os aproxima, mesmo se um parece dar um passo para o exterior e o outro recolher-se para a intimidade.
Completamente de acordo. Acho normal que se procurem laços entre os filmes de um realizador. Como num casal, podemos lutar, mas estamos ligados. Podemos acariciar-nos e estamos ligados. Os meus filmes têm laços. Aqui, e para regressar ao que diz, trata-se de duas personagens que têm o Homem em grande conta. A personagem de Vincent, quando se vai embora, diz-nos, sem palavras porque ele não as utiliza, não é um filósofo: “Valho mais do que aquilo que me querem impor, vão-se foder, vou-me embora.” Há algo de muito poderoso e de muito belo no seu gesto, e esse é o lugar do seu drama. É, como no caso de Jeanne, o seu suicídio social. No mesmo lugar há o belo e o trágico.
Para encerrar a relação com A Lei do Mercado: o trabalho com Lindon marcou um antes e um depois?
O trabalho com actores profissionais e não profissionais abordo-o da mesma maneira, passa tudo pelo mesmo processo, procuro a mesma coisa. Não acredito na ideia da construção de personagem. Penso num filme como um documentário sobre cada actor, e disse isso claramente a Judith: faço um documentário sobre si. Digo isso a cada actor. É preciso que haja algo da pessoa, da sua relação com o mundo, que devo encontrar para saber se se adequa à personagem do papel. Agora A Lei do Mercado levou-me a colocar a câmara noutro lugar. Lembro-me que fiz o casting para a personagem de Jeanne no mesmo momento em que fiz o casting para a mulher da caixa do supermercado de A Lei do Mercado. Havia um poder tão grande naquelas mulheres modestas, era tão tocante, que nem elas sabem como a verdade delas tão imponente colocou a fasquia bem alto, quando no dia seguinte eu me encontrava com as actrizes candidatas ao papel de A Vida de Uma Mulher. A verdade de um grande actor, Judith [Chemla], Vincent [Lindon], Sandrine [Kimberlain] pode estar ao nível da verdade de um não profissional.
Este filme tem uma construção singular, com o uso de flashbacks e da elipse. O tempo é uma força que consome, tudo está sempre em risco de desaparecer — mesmo os actores, parece que vemos as marcas da sua passagem pelo filme. Não se trata do flashback evanescente que se apoia num presente sólido. Estamos permanentemente a experimentar o desaparecimento. A casa de Jeanne, por exemplo: corrompe-se, no final é como se estivesse destruída.
O filme começa e nos primeiros 15 minutos pensamos que estamos no presente. Depois há uma cena de conversa, vemos Jeanne numa estrada, percebemos que é a mesma mulher, mas mais velha. Aí compreendemos que o que pensámos que era o presente é o passado. A partir desse momento tudo fica tintado de melancolia — e nisso junto-me ao que disse sobre o sentimento de degradação: sentimos que tudo se vai destruir, porque tivemos uma imagem do que se vai passar depois.
Na imagem de Jeanne à beira da estrada há tragédia, dor, solidão. Tudo o que se passa depois de luminoso passa a estar tocado por aquela imagem. O conto de fadas, com o príncipe encantado, desagua naquela cena da cama, cena sem corte, cena de violação conjugal. Nesse momento o trágico está no mesmo lugar do belo. Jeanne está sozinha, essa solidão não vai deixar de a acompanhar. Isso não tem que ver com uma época, isso tem que ver com hoje e existirá para sempre: podemos estar ligados, mas não deixaremos de estar sós.
Há constantemente digressões, é uma narrativa estilhaçada, ao contrário do romance que é muito linear, mas foi a forma de encontrar uma tradução cinematográfica para a emoção do tempo em Maupassant — e a resposta absolutamente paradoxal é a utilização do princípio da elipse, que é mesmo o não tempo. É nesse não tempo que pode acontecer o que quisermos: três minutos ou 30 anos. Esse utensílio dramatúrgico, que estava no argumento e que foi desenvolvido grandemente de forma intuitiva, primeiro na rodagem e depois na experiência da montagem, permite-me dar essa noção do tempo que passa: a ideia de que o nosso presente está sempre habitado pelo passado, o passado convida-se sempre para o nosso presente.
Se me pusesse na pele de Maupassant, teria de fazer um filme de dez horas. Tinha duas horas. Não podia contar menos coisas, teria de as contar de maneira diferente. Por isso convoco a elipse. Ao colocar lado a lado Jeanne com 20 anos e Jeanne com 50, dou o sentimento do tempo que passa. É espantoso viver e experimentar essa relação com o tempo, fazê-lo sentir.
E há o som — por exemplo, o crepitar da lareira, que dá uma densidade táctil ao mundo de Jeanne e aproxima-o de nós, quer dizer, tira-lhe a data...
Estamos no ponto de vista de Jeanne. O som é um ponto de vista subjectivo. Há momentos, por exemplo, em que está anormalmente alto — porque é o som no interior da cabeça da personagem. Tento trabalhar segundo a ideia do realismo, uma projecção, interpretação de uma ideia do real. Para mim, a realidade passa pelo som. E a questão do som começa por ser uma questão de captação do som. Peço aos meus técnicos que não coloquem a perche demasiado próximo das vozes dos actores. Quero captar a reverberação do som dos espaços. O som nunca é como o som de uma dobragem, nunca é plano. A crepitação do fogo da chaminé interfere nas palavras, nas sílabas, os pequenos barulhos da madeira seca, mas isso, esses acidentes, é o real, é um lugar das vidas das pessoas. O cinema tem tendência para asseptizar tudo. A vida não é assim, há o ladrar dos cães, o som de um relógio quando Julien faz o mea culpa — é isso que tento traduzir. O meu técnico de som tentava afastar-se disso e colocar o equipamento noutro lugar. “Não tento colocar a câmara onde me dá jeito, porque é que temos de colocar o microfone onde te dá jeito?”