O admirável mundo novo do futebol

Não nos podemos esquecer que ainda há um longo caminho a percorrer na introdução de democraticidade na regulação desportiva em Portugal. O futebol – com toda a sua dimensão mediática e económica – tem que ser o motor de mudança de paradigma.

Os recentes acontecimentos no futebol têm “apimentado” a silly season de uma forma efusiva e, talvez exceptuando alguns dos escândalos mais mediáticos, quase sem precedentes. É fácil afirmar que desde cartilhas, e-mails comprometedores, ataques informáticos, entre outros, parece ter existido de tudo um pouco para inflamar os adeptos e começar o combate da época 2017/2018.

Curiosamente, um dos temas mais fulcrais – e que se encontra relacionado com estas polémicas – diz respeito à transparência no sesporto. Com efeito, não podemos esquecer que a FIFA e a UEFA têm trabalhado – embora não sem críticas – para introduzir uma maior democraticidade e transparência na regulação desportiva.

Neste ímpeto reformista – que tem sido pouco estimulado em Portugal – de evidente abandono de uma concepção que assentava na ideia independentista (em todos os sentidos) das estruturas de regulação do desporto e que é fundamento da existência de um poder quase ilimitado, merece uma particular menção a recente alteração ao regulamento disciplinar da UEFA no que toca à instituição de aconselhamento jurídico gratuito, bem como a consagração da inexistência de “custas” disciplinares no domínio da dopagem.

Esta decisão demonstra uma particular ruptura com um paradigma, uma vez que, observando a história do associativismo desportivo, verificamos que os agentes desportivos (atletas, dirigentes, árbitros, etc.) foram quase sempre negligenciados na construção normativa de regulação das federações desportivas transnacionais e nacionais.

A visão – que não perfilhamos – de que os agentes desportivos não necessitam de uma particular protecção do Estado em relação às estruturas de regulação não é condizente com as particularidades da prática desportiva, nomeadamente, com a sua vertente económica e enquanto forma de exercício de direitos fundamentais.

No âmbito da justiça desportiva este entendimento reflectiu-se, desde um passado não muito distante, na necessidade de impedir o recurso dos agentes desportivos aos tribunais para tutelarem a sua esfera jurídica, evitando que aqueles se defendessem das “agressões” (ilegalidades) cometidas pelas federações desportivas.

Na nossa tese de doutoramento (Artur Flamínio da Silva, A Resolução de Conflitos Desportivos em Portugal: entre o Direito Público e o Privado, Almedina, 2017) investigámos precisamente a concepção contrária: como podemos ter uma justiça desportiva adequada a proteger os agentes desportivos, mantendo ainda um poder próprio de regulação nas federações desportivas.

Saber que os atletas são a parte tendencialmente mais fraca em relação ao exercício dos poderes das federações desportivas é um elemento essencial para compreender e construir o regime jurídico da justiça desportiva portuguesa. A este respeito, o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) permite-nos sempre encarar este problema com um sentimento agridoce. Por um lado, é inegável que a existência do TAD tem – embora não tanto gostássemos – permitido colocar em evidência alguns problemas jurídicos relevantes no domínio do desporto que não teriam a mesma expressão (inclusivamente mediática) num cenário em que aquele inexistisse.

Por outro lado, a verdade é que o TAD não alcançou ainda o sucesso que pode potencialmente atingir. A estruturação legal daquele partiu de uma visão que se encontra ultrapassada, nomeadamente da concentração de poder nas federações desportivas, ignorando a necessidade de participação dos agentes desportivos.

Não está em causa a importância e a utilidade de um mecanismo arbitral para a resolução de conflitos desportivos, mas antes a adequação de um modelo centrado – quase em exclusivo – nas federações desportivas.

Em determinadas situações, o modelo é igualmente incongruente para com as federações desportivas e para com os agentes desportivos. Pense-se, por exemplo, no problema das elevadas – e totalmente desadequadas – custas do TAD, o qual não pode ser ignorado, colocando em causa o acesso à tutela jurisdicional de agentes desportivos, mas também das federações economicamente mais frágeis.

Não é só o TAD que acolhe este modelo. Basta olhar para os regulamentos disciplinares das federações desportivas portuguesas e encontramos – salvo raras excepções – “custas” elevadas que só têm como função que os agentes desportivos não busquem a tutela jurisdicional, ficando, assim, “satisfeitos” com a solução que os órgãos disciplinares possam dar à sua pretensão.

É este o momento em que não nos podemos esquecer que ainda há um longo caminho a percorrer na introdução de democraticidade na regulação desportiva em Portugal, mas em que o futebol – com toda a sua dimensão mediática e económica –  tem que ser o motor de mudança de paradigma.

P.S. O título deste artigo glosa deliberadamente a obra de Aldous Huxley, sob o título Admirável mundo novo, sem, no entanto, transpor – explícita ou implicitamente – a crítica do autor para o presente texto.

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