Um hotel de cinco estrelas para os sem-abrigo do Porto
Ainda há em Portugal capitalistas e grandes empresários capazes de gestos magnânimos.
No dia 18 de Fevereiro de 2011 publiquei neste diário um texto com o título “O BES abre... ou fecha?”, em que me referia à inutilização de um “conjunto diversificado de espaços” edificados, num “pequeno e bonito bairro” do Porto, chamado Graham, Complexo Residencial da Boavista, ou Foco, e esclarecia: “O cinema (“Estúdio Foco”), que alguns diziam o melhor do Porto, está fechado há uns 15 anos, sem outra serventia. A piscina interior, como o chamado centro social, ou clube, deixou de funcionar há perto de uma década. A piscina exterior e o hotel (Tivoli), onde se hospedavam presidentes da República (Jorge Sampaio não queria outro no Porto), campeões europeus de futebol, e gente célebre como Umberto Eco ou António Lobo Antunes, encerrou, sem aviso prévio, vai para uns três anos.”
De nada valeu esta denúncia, ou só valeu para suscitar uma refinada rectificação do BES: ele já não era o proprietário do conjunto desses espaços, a propriedade passara para uma empresa (...que ele criara e a que estava associado!). Tal empresa não anunciou as diligências que fizera ou iria fazer para tornar úteis esses espaços, concebidos de raiz para favorecer a qualidade de vida dos residentes do bairro e dos forasteiros; nenhum governante ou autarca a ameaçou com sanções por deixar de cumprir funções previstas em 1973 pelo arquitecto Ricca Gonçalves e pela Câmara Municipal do Porto, por desperdiçar bons equipamentos e instalações, ou por ter acabado com postos de trabalho; e ninguém, nem mesmo os prejudicados comerciantes do bairro, manifestou publicamente a sua justificada indignação.
Meia dúzia de anos depois, continua a não se divisar vivalma a entrar ou a sair dos referidos hotel, cinema, centro social, piscinas. Mas há semanas pareceu acender-se uma luzinha quando uma escavadora andou a fazer furos junto de uma das piscinas e no jardim que está em frente, o jardim que, por sugestão minha, de que me orgulho, se chama Machado de Assis, e que, curiosamente, é enquadrado pelas ruas Fernando Pessoa, Afonso Lopes Vieira e Eugénio de Castro.
É certo que a escavadora foi logo embora, e voltou a cair sobre a extensa área edificada a poeira do velho silêncio estéril. Mas desde então não falta quem lhe aponte um novo destino. Ao longo dos anos em que esteve encerrada, corriam vozes desencontradas a dizer que ela se transformaria num hotel ampliado, ou num centro de saúde, ou num lar de idosos; mais recentemente, constava que ela passaria a funcionar como extensão de um hospital privado, que é o que ainda está a dar. Ora, depois dos furos começou a constar que os actuais donos do espaço há tanto tempo inutilizado — quem são? — o vão abrir e disponibilizar aos sem-abrigo do Porto.
Não se sabe ao certo o que está por detrás de tão insólita decisão; há sempre os que desconfiam, como os pobres quando a esmola é grande. Supõem alguns que os donos actuais se enfadaram com a ponderação dos vários projectos furados; dizem outros que quiseram fugir à humilhação das penalizações que o Estado vai certamente aplicar a proprietários de florestas, de terras ou de propriedades há muito abandonadas; mas também há quem admita que eles se condoeram, pois são sensíveis, com os sem-abrigo que numa noite chuvosa e fria viram estendidos junto da porta há mais de 20 anos encerrada do Estúdio Foco; e não falta quem diga que saindo altas horas de uma festa tropeçaram num filho e num sobrinho que trabalhavam com os voluntários do C.A.S.A. (Centro de Apoio aos Sem-Abrigo) ou do grupo Saber Compreender, como não falta quem garanta que na mesma noite eles deram de caras com o Presidente Marcelo — saído de um convívio com alguns sem-abrigo do centro do Porto —, que os cumprimentou e, com irresistível afecto, os incitou a fazer alguma coisa para que em 2023 já não haja em Portugal mais pessoas a dormir na rua.
Sejam quais forem as razões da insólita decisão, o que importa é que ela vai levar para o antigo hotel Tivoli (cinco estrelas) alguns dos cem sem-abrigo portuenses que dormem na rua, ou alguns dos 400 que dormem em casas em ruínas. Mas essa decisão também provará que ainda há em Portugal capitalistas e grandes empresários capazes de gestos magnânimos.