A febre da alcatifa

Foi um fenómeno (e uma moda) que nos aconchegou durante décadas. Desenrolámos muita alcatifa, mas agora já só pensamos em arrancá-la. Na série Objectos (quase) Obsoletos olhamos para aquilo que foi substituído, eliminado ou transformado em cada quarto, cozinha ou varanda. Primeiro de seis textos.

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Os aviões, os cinemas e os hotéis ainda a têm, alguns restaurantes de luxo também. E quando toca a falar de coscuvilhices de escritório ainda há quem invoque a expressão “rádio alcatifa”, mas a verdade é que esta forma de revestimento do piso quase desapareceu das nossas casas, das nossas vidas. Nos últimos anos, até voltou a estar debaixo de olho dos designers, mas a febre da alcatifa já passou - um fenómeno que forrou a vida portuguesa sobretudo nas décadas de 1960 e 70.

Eram rolos e rolos de carpete, sobretudo em fibra sintética mas também, mais cara, em lã bem fofa, que se aplicavam com cola sobre o chão. Alguns portugueses só souberam se viviam sobre tacos, madeira ou cimento quando, nas décadas de 1980 e 90, começaram a arrancá-la. Não foi o caso de Fátima Coutinho, que sabia bem que era laje que pisava nos últimos 40 anos em Matosinhos, num prédio cujo projecto e construção acompanhou desde o início. Ainda antes de o edifício estar erguido, Fátima lembra-se de ter nas reuniões “um senhor que vendia alcatifas”. “E compraram-se alcatifas iguais para o prédio todo, em bege”, recorda ao PÚBLICO.

Hoje, é a última moradora do prédio que ainda tem alcatifa em casa. A sala cedo ficou sem ela, mas nos quartos está lá. Bege, ainda, mas já na sua terceira encarnação. “É prático e cómodo levantar da cama e andar em alcatifa”, diz, mas só até ao próximo mês Setembro. Nessa altura, virão retirá-la e substituí-la por pavimento em madeira, porque a exigência da limpeza da alcatifa é muita.

Ser moderno, ter o chão em alcatifa
Fátima Coutinho mudou-se no final da década de 1970 para um apartamento novinho em folha coberto de alcatifa de parede a parede, algo que equipara a uma afirmação de “identidade”. “O pavimento em madeira era o que trazíamos de casa dos pais. Não queríamos nada que os nossos pais tinham, o moderno quando eu me casei, em 1965, já eram as alcatifas”. Foi na década seguinte que se generalizaram e massificaram como uma espécie de símbolo da classe média - tornaram-se sinónimo de conforto, envolvendo as famílias no que a escritora Sarah Adamopoulos chamou A Vida Alcatifada no livro homónimo de 1997.

“A alcatifa é um êxito pop consensual”, lê-se no livro LX70, de Joana Stichini Vilela, e vendia-se naquela década por preços entre os 175 e os 400 escudos (2 euros) o metro quadrado, nas drogarias, nas feiras ou em lojas especializadas como o Supermercado das Alcatifas da Parede ou na zona mais nobre da capital, no Rossio ou nos Restauradores. Nos anos 1970, forram salas, quartos e corredores e até a ocasional (mas muito mais rara) casa de banho. Condizem ou chocam com as paredes pintadas integralmente de cores vivas ou tons terra e com os papéis de parede de “motivos densos, pesados, como as cornucópias”, exemplifica Marta Cunha, responsável pelo design de interiores do Ikea em Portugal.

Foi nessa década que uma das maiores empresas do sector se afirmou - a Fábrica das Alcatifas da Lousã Carvalhos, que na época chegou a “trabalhar 24 sobre 24 horas e não conseguia dar vazão” a tantos pedidos, como disse o seu ex-chefe de pessoal, Marcolino Simões, em 2006 à Lusa. “Podemos dizer que o Algarve foi todo alcatifado pela Lousã, embora o mercado de Lisboa também fosse muito importante”, disse Simões em vésperas do encerramento da grande fábrica, que chegou a empregar 250 pessoas nas décadas áureas e que se extinguiu com cerca de 30 trabalhadores.

Ainda há várias empresas do sector no activo, nomeadamente na zona Centro do país - da Britons, do grupo britânico homónimo que é o maior fabricante mundial de alcatifas e carpetes industriais, que está em Vouzela desde 1990, à Safina, que nasceu em Ovar em 1971 e que se reinventou usando o seu conhecimento no fabrico de alcatifa para se tornar num dos mais importantes fabricantes de relva artificial da Península Ibérica, como se lê no relatório Portugal no Centro, parte da Iniciativa Cidades da Fundação Calouste Gulbenkian. Mas como o então administrador da Fábrica das Alcatifas da Lousã, Carlos Carvalho, confirmava, a empresa fechou “devido às tendências de mercado, à queda dos negócios das alcatifas e à concorrência agressiva”.

Retirar a alcatifa: o momento de simplificar
Uma evolução da ancestral arte da tapeçaria, a sua versão barata e industrial é sobretudo desenvolvida nos anos 1950, nos EUA. Hoje, a alcatifa ainda é vendida em muitas lojas, antigas e novas, e também em grandes superfícies como o AKI ou Leroy Merlin. Mas noutras, como o IKEA, nunca se vendeu alcatifa em Portugal, como confirma Marta Cunha. “Temos de ver a relevância do produto no mercado” e em Portugal ela já não é o fenómeno de outrora. “Foi uma tendência no início dos anos 1980 retirar a alcatifa”, diz a designer de interiores, que lembra o papel dos médicos nessa inversão da tendência. “São muito mais frequentes as alergias com uma alcatifa”, reconhece Fátima Coutinho, médica reformada, e “está contraindicada” em casos de peles ou sistemas respiratórios mais sensíveis.  

Mas também “somos um país de cerâmicas”, diz Marta Cunha, que vê nessa retirada nacional da alcatifa nos anos 1980 e 90 “um virar de época”. “Quando retirámos as alcatifas era um movimento - um momento de simplificar. Nas linhas da casa, nas cores, procurava-se algo mais livre e mais iluminado”, explica a responsável pelo design de interiores do Ikea em Portugal. “Fomos do conforto para o frio, a cerâmica”, mais fácil de limpar, num momento em que havia mais escolha no mercado e onde já se podia “ter o mesmo efeito com tapetes”.

No ano passado, segundo dados provisórios do INE consultados pelo PÚBLICO - que não tem dados específicos para a alcatifa e que não recuam até às décadas áureas deste revistimento em Portugal - a indústria de fabricação de tapetes e carpetes vendeu 68,7 milhões de euros, mais do dobro do que em 2008. Destes, 14,9 milhões de euros correspondem à categoria de “tapetes, carpetes e outros revestimentos para pavimentos”.

A alcatifa já foi parte da língua franca do país. É hoje uma palavra que alguns, mais jovens, até estranham, mas que continua a existir no jargão empresarial, por exemplo, quando a “rádio alcatifa” ainda é a forma não-oficial como circula a informação numa empresa, a sintonia dos rumores e das conversas de corredor. Resiste também na retórica dos políticos, símbolo de algo burguês, acomodado - “uma coisa é viver no interior e conhecer as dificuldades, outra é olhar para o interior a partir das alcatifas de Lisboa”, atirava o ex-secretário-geral do PS, António José Seguro, há dois anos. Permanece também após a renovação do grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, um revestimento bege que não só mantém o som da sala bem confortável como aconchega as memórias do espaço. Está por aí, ainda, mas é quase um dialecto sectorial.

Em Assalto ao Arranha-Céus (1988) Bruce Willis comprova a dica de um homem de negócios quando faz “punhos com os pés” descalços em cima da alcatifa do escritório da mulher, na Torre Nakatomi, em Los Angeles, relaxando assim de forma eficaz após um longo voo. Até hoje, embora também registem uma quebra no mercado e uma valorização extra dos soalhos de madeira, os americanos continuam a gostar dela. Não só nos hotéis e nos escritórios, mas também nos apartamentos e moradias, tal como os cidadãos de países mais frios, como os alemães e os britânicos. Vêem-se assim unidos aos refugiados como Kilian, que há quatro anos decorava o parco espaço à porta da sua caravana em Zaatari, no segundo maior campo de refugiados do mundo com um pedaço de alcatifa, um símbolo de conforto e, sobretudo, de “casa”.

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