Os cavaleiros da Mancha

Se isto hoje parece "experimental" é menos por um arrojo de Nolan do que pela tabula rasa desmemoriada em que se tornou o espectáculo cinematográfico.

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A história do resgate do Corpo Expedicionário Britânico, entalado nas praias de Dunquerque

Pode-se tirar Christopher Nolan do universo dos super-heróis, mas se calhar não se pode tirar o universo dos super-heróis de Christopher Nolan. Dizer isto não é por completo um queixume a propósito de Dunkirk, o filme em que o celebrado autor da saga do Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas) conta a história do resgate do Corpo Expedicionário Britânico, entalado nas praias de Dunquerque entre os exércitos nazis e o Canal da Mancha, na sequência da débacle provocada pela invasão alemã de França em Maio de 1940. Reparem, por exemplo, nas cenas com os aviadores, numa das três linhas narrativas em que Nolan divide a história: enfiados nos seus Spitfires, com as máscaras a cobrir-lhes o rosto, eles são os heróis alados, omniscientes e providenciais (como veremos no fim, num dos vários “last minute rescues” disseminados ao longo do filme), que chegam das alturas para salvar in extremis os mortais comuns da Infantaria e da Marinha.

Não há, por norma, sentido de humor nos filmes de Nolan (e em Dunkirk também não: a solenidade pesarosa é, como habitualmente, de rigueur), mas se pensarmos que um dos aviadores é Tom Hardy, e que aquela máscara (com que ele passa o filme praticamente todo) é muito semelhante à que envergava (durante o filme todo) como vilão de The Dark Knight Rises, detectamos aqui a leve sombra de um gag auto-referencial, não isento das suas virtudes: encontrar maneira de encaixar a iconografia dos super-heróis sobre as praias do Norte de França em 1940 é mais engenhoso do que fazê-lo numa previsível Gotham.

Essas cenas dos aviadores são as mais satisfatórias de Dunkirk, até na maneira como reproduzem o ponto de vista dos pilotos, e o “ângulo morto” que faz da possível chegada dum avião inimigo um acontecimento imprevisto. São também as mais pragmáticas, com personagens exclusivamente funcionais e concentradas na sua função, sem tempo para observações de circunstância ou tiradas poéticas (pecha de que os diálogos do filme, tão hirtos como a maioria das personagens, de forma geral não se livram).

Nolan também gosta das coisas bem redondas, dos puzzles narrativos e das contracções temporais (ver Inception ou Interstellar), e nem aqui se livra delas. Mas o facto de cada uma das linhas narrativas do filme (os aviadores; o barco capitaneado por Mark Rylance em rota de Inglaterra para Dunquerque; e a espera dos soldados e marinheiros encurralados no areal) se estender por um período temporal diferente (uma hora, um dia, uma semana, respectivamente) acaba por resultar em mero “truque”, que de resto tem que ser anunciado pelas legendas no princípio do filme ou passaria despercebido – não há nenhuma temporalidade intrínseca às imagens de Nolan, ou sequer ao ritmo da sua montagem, que torne discernível ou formalmente relevantes as diferentes amplitudes do espectro temporal coberto, tornadas mera engenharia de argumento que quando muito permite alguns flash-backs que supostamente trazem uma luz diferente a certas personagens (como a do “covarde” de Cillian Murphy), que nem por isso deixam de parecer irremediavelmente subdesenvolvidas, manequins soturnos construídos a golpes de gravidade artificial e desprovidos de uma humanidade espontânea e genuína (como é evidente: estamos a muitas milhas de Raoul Walsh, de John Ford ou de Samuel Fuller).

Na sua construção em montagem paralela, na profusão de pequenos picos dramáticos numa lógica de last minute rescue, o apregoado “experimentalismo” de Nolan serve-se, afinal, de uma receita tão velha quanto o cinema: dito assim, parece estranho, mas a melhor maneira de descrever Dunkirk é dizer que ele segue uma lógica griffithiana, até nos efeitos circulares, e se isto hoje parece “experimental” é menos por um arrojo próprio de Nolan do que pela tabula rasa desmemoriada em que se tornou o grande espectáculo cinematográfico.

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Não quer dizer que Nolan não tenha ambição, e nem custa louvá-la, porque é óbvio que na sua estrutura narrativa há um desejo de sofisticação que não se vê todos os dias. Mas a sua tentativa de criar um filme que seja como um “movimento” griffithiano, feito de encadeamentos e paralelismos, a sugerir a ligação total entre todos os elementos de um dado universo (ou de todo o universo: Dunkirk é um bocadinho Interstellar no Canal da Mancha) precisa da ajuda da “sopa”, no sentido straubiano do termo, que é fornecida pela partitura de Hans Zimmer.

Não importa a sua qualidade, embora ela tenha tendência a ser enervante naquelas martelada de Philip Glass de meia tigela; importa o uso verdadeiramente sufocante que Nolan lhe dá, fazendo dela a massa que une tudo e que dá a ilusão de que todas aquelas mudanças de tempo e de cenário se processam, mais do que harmoniosamente, necessariamente. Pior: nem deixam ouvir o som do vento a bater no mar (e mesmo na praia parece que estamos num estúdio). E isso, griffithianamente, é imperdoável.

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