O peido de Salvador Sobral
Salvador não tem nada que pedir desculpa. Tem apenas de aprender, como Nietzsche há muito nos ensinou, a beber de um só trago as tempestades que é capaz de criar.
Já toda a gente sabe o que foi dito no concerto pelas vítimas de Pedrógão Grande, mas vale sempre a pena repetir: “Eu sinto que posso fazer qualquer coisa que vocês aplaudem. Vou mandar um peido para ver o que é que acontece.” Utilizei “peido” no título deste texto, e não “pum”, “traque” ou “flato”, alternativas socialmente mais aceitáveis, por uma razão: apesar de ser palavra feia, só ela faz inteira justiça a esta nova manifestação de desagrado pelo tipo de reconhecimento de que tem vindo a ser alvo. Salvador Sobral, 27 anos, é um homem desconcertante e profundamente incomodado com a absurda fama que se abateu sobre ele, por causa de uma canção simples composta pela sua irmã.
Todo o artista quer ser reconhecido, mas não de qualquer forma. Basta olhar para Salvador no pós-Eurovisão e escutar com atenção o que diz nas entrelinhas: ele considera esta fama fraudulenta, por ser fruto de um acaso e não de um percurso artístico consistente. Salvador Sobral é um artista verdadeiro que sente ter conquistado uma glória falsa. Está com dificuldade em perdoar o público por isso, e em perdoar-se a si mesmo. Essa é a razão porque a sua frase é bruta, mas não ofensiva, tal como não é ofensivo soltarmos um palavrão depois de nos ter caído um tijolo no pé. Pelo contrário: a revolta do peido caracteriza e descontrói na perfeição as regras cínicas da sociedade do espectáculo – a degradação do “ser” em “parecer”, para citar Debord –, confessando o desejo íntimo, comum a todo o artista genuíno, de as fazer implodir. A fama – esta fama específica por causa de Amar Pelos Dois – é o tijolo a cair no pé do artista Salvador Sobral.
Há dias estava a ler a revista Empire, na qual o louro Dolph Lundgren – bolseiro do MIT que abandonou a engenharia química para ir apanhar murros de Sylvester Stallone em Rocky IV, tornando-se uma estrela mundial instantânea – partilhava com os leitores estas sábias palavras: “Failure is tough, but success can be worse.” Falhar é mau, mas ter sucesso pode ser ainda pior. E para o provar há, de facto, uma fila quilométrica de estrelas que perderam o norte por incapacidade em lidar com a exposição extrema e o eclipse da sua privacidade. Se lidar com este sucesso já é mau, imaginem lidar com ele quando sentimos que o mérito que nos é atribuído não tem razão de ser, e que nos tornámos o nome mais badalado do país graças a um acontecimento que não nos representa enquanto artista.
Salvador Sobral pediu, entretanto, desculpa: “Sempre falei duas vezes antes de pensar. Esta minha característica tem a sua parte boa e também a parte má. [Terça-feira], infelizmente, reconheço que fui bastante inoportuno.” Não sei se consciente ou inconscientemente, Salvador citou Chico Buarque e uma canção maravilhosa chamada Bom Conselho (composta no ano em que eu nasci, 1973, em plena ditadura brasileira), onde a certa altura se escuta: “Faça como eu digo/ Faça como eu faço/ Aja duas vezes antes de pensar.”
Esta inversão dos lugares comuns é aquilo que se espera de um criador autêntico. A canção termina com estes três versos: “Eu semeio o vento/ Na minha cidade/ Vou p’ra rua e bebo a tempestade.” Salvador Sobral deveria incluir Bom Conselho no seu reportório, porque aquele peido – o seu peido atlântico – é precisamente esse vento, que todo o artista tem o dever de semear. Salvador não tem nada que pedir desculpa. Tem apenas de aprender, como Nietzsche há muito nos ensinou, a beber de um só trago as tempestades que é capaz de criar.