Prince e a obra que iria ser um desastre e se tornou mítica
Em 1984 os universos da soul e do rock eram apartados e ser-se exploratório e popular não era para todos. Foi então que apareceu Prince com o álbum e filme Purple Rain mostrando que era possível conciliar todas essas dimensões. O disco foi agora reeditado com inéditos. Um luxo.
O ano de 1984 foi de felicidade para Prince Rogers Nelson. Thriller (1982) de Michael Jackson ainda pairava nas tabelas de vendas. Bruce Springsteen havia lançado Born In The U.S.A. e os americanos dançavam ao som da banda-sonora de Footloose. Mas o álbum que permaneceu nas tabelas de vendas durante mais tempo nesse ano, depois da edição em Junho de 1984, dava pelo nome de Purple Rain.
É esse mesmo álbum que passados 33 anos sobre a sua edição, e um ano depois da morte de Prince, é reeditado, com um acréscimo relevante: repleto de temas inéditos e raridades. Existem duas versões: uma delas com dois CDs (o original remasterizado e o disco From the Vault & Previously Unreleased) e outra com três CDs e um DVD (além dos mencionados, junta-se Single Edits & B-Sides, e um DVD com o concerto Live at the Carrier Dome, Syacuse, NY, de Março de 1985).
Logo depois da sua morte, a 21 de Abril do ano passado, antecipou-se que o arquivo de Prince estava recheado de música nunca antes editada, com o Bremer Trust Bank, responsável pela gestão do património, a afiançar que terá deixado material para lançar um disco por ano nos próximos 100. Talvez seja exagero, mas conhecendo-se que tinha um apetite voraz por criar não custa acreditar. Para já aí estão uma série de temas inéditos, todos eles registados no período criativo que daria origem a Purple Rain.
É pouco crível que algum deles venha a atingir o sucesso de qualquer um dos pares já conhecidos (cinco das nove canções de Purple Rain viriam a originar singles) mas fica também a certeza que nenhum deles desmerece o talento do autor. É o caso da longa digressão dançante que é The dance electric, registada no Verão de 1984, ou as epopeias funk Love and sex e Computer blue. Em Electric intercourse temos o Prince de falsete numa incandescente balada, enquanto em Our destiny/Roadhouse garden temos Lisa Coleman nas vozes e Possessed entra numa toada electro-funk, num tema que terá sido composto depois de ter assistido a um concerto de James Brown. A única dúvida que fica, sabendo-se como nos últimos anos se tornou casto, é se concordaria com a edição de canções com títulos como Wonderful ass ou We can fuck.
Mas a verdade é que esses foram talvez os anos mais hedonistas de Prince. E também aqueles onde a sua ambição ficou mais vincada. O seu sucesso era crescente, com os cinco álbuns que já havia lançado, particularmente com 1999 (1992), mas ainda não granjeava do estatuto de figura única da música popular. Estava num momento determinante do seu percurso.
Desde o seu primeiro álbum, em 1978, parecia ter como missão incarnar décadas de música popular, inserindo no mesmo lugar funk, soul, rock, pop, electro e muita fisicalidade libidinal à mistura. Mas a verdade é que até Purple Rain ainda não havia conseguido posicionar-se de forma categórica junto de um público transversal, conciliando sucesso popular e credibilidade artística. Nos anos 1980, em muitos lugares, como em Portugal, e para muitas franjas, como as conectadas com o pós-punk, continuava a ser apenas uma curiosidade, com um visual exótico, tentando ser, ao mesmo tempo, Jimi Hendrix e Otis Redding, Beatles e James Brown, Fleetwood Mac e Sly Stone, Marvin Gaye e Kraftwerk.
O reconhecimento universal que desejava estava longe de ser um facto, até porque alguns dos seus discos iniciais respiravam ainda um universo muito fechado onde ele parecia ser o único habitante, compondo, orquestrando, produzindo e tocando a quase totalidade dos instrumentos.
Todos os que o rodeavam achavam que a obra seguinte teria que ser calculada com precisão, mantendo o rumo estético do álbum anterior que se revelara um êxito, principalmente junto do público consumidor de soul, funk e R&B. Mas Prince queria mais. Desejava também alcançar o público mais afecto à cultura rock. Pretendia ser visto como o líder e guitarrista de uma banda, capaz de congregar várias tipologias no espaço de uma só canção de forma orgânica. Queria arriscar, experimentar e ser popular. Quando soube das intenções o seu agente ter-lhe-á dito: “Tens de escolher. Não podes querer ser Miles Davis e Elvis Presley em simultâneo.”
Mas quando começou a trabalhar no sexto álbum não pensou apenas num disco, mas num filme que ele protagonizaria, acabando o disco por servir de banda-sonora. Quando expôs o projecto à sua agência de management e à editora Warner, no Verão de 1983, estes não se mostraram convencidos. Não só receavam que a mudança estética alienasse o público que já havia conquistado, como o filme lhes parecia uma excentricidade sem sentido. Mas ele mostrou-se irredutível. Ou o projecto ia para a frente ou procurava outros parceiros, acabando Bob Cavallo, o agente, por assumir o papel de produtor, depois de vários estúdios de cinema lhe terem virado as costas. Para a realização foi contratado o desconhecido e recém-formado Albert Magnoli, sendo o argumento reescrito para se centrar numa visão ficcionada da biografia de Prince, acabando a Warner Brothers por concordar em distribuir o filme por algumas salas nos EUA.
O desastre parecia mais do que provável para um filme de orçamento médio, com um conjunto de músicos-actores que nunca tinha actuado antes, dirigidos por um realizador estreante e uma estrela que se recusava a fazer qualquer entrevista de promoção. Mas na primeira semana de exibição o orçamento foi largamente pago, ultrapassando na altura os 70 milhões de dólares em receitas de bilheteira só nos Estados Unidos. A crítica não o recebeu bem, o que não espanta, é um longo videoclipe ficcionado de psicologia simplista, suportado por uma estética datada, mas foi um sucesso financeiro e de público. E de repente, no Verão de 1984, Prince era o homem de quem se falava, por causa do álbum e do filme.
Do álbum anterior, 1999, até aí o seu maior sucesso, haviam sido vendidas 3 milhões de unidades. Purple Rain ultrapassou a fasquia das vinte e cinco milhões de cópias, sendo a sexta banda-sonora mais vendida de sempre. Para o êxito do disco contribuiu o facto de Prince ter deixado o autismo de outros tempos, desenvolvendo uma relação de confiança com a guitarrista Wendy Melvoin e a teclista Lisa Coleman – que depois de terem integrado os The Revolution viriam a formar a dupla Wendy & Lisa – sinal de maior abertura às ideias e ao desempenho de outros músicos, com resultados benéficos numa série de canções que mantém a aura da intemporalidade.
Na altura as duas primeiras canções que chegaram ao público foram When doves cry e The beautiful ones. A primeira, com voz processada, um ambiente inicial quase industrial e uma letra ambígua – “Maybe i’m like my father, you’re like my mother” – e a segunda, uma balada que começa em câmara lenta, em atmosfera tecnológica, instalando um ambiente de solidão futurista, deixavam nítido que as fantasias sexuais haviam sido suplantadas. Agora o seu universo era mais romantizado e amadurecido.
Também do ponto de vista sonoro existiam diferenças. O funk puro e duro ainda lá estava, mas agora mais aproximado da elasticidade pop-rock, com inflexões barrocas, das quais resultavam canções mutantes. O sintoma era óbvio: alcançar uma audiência mais transversal, principalmente entre quem não ouvia música negra, sem renegar o que já havia conquistado.
Nesse contexto em particular a canção Purple rain adquire um significado particular. Não existe consenso sobre a sua história, mas as fontes mais credíveis apontam para que a inspiração na sua feitura tenha surgido depois de Prince ter visto em palco o cantor Bob Seger, então muito conhecido entre o público médio branco americano, cantar baladas empolgantes. A costela arrebatadora de Purple rain e o seu desejo de compor baladas para grandes audiências parece ter surgido dessa forma.
Mas existe também uma dimensão de reconciliação consigo próprio, e com o mundo, contida nessa canção. Existe qualquer coisa de místico que a atravessa, com o solo de guitarra que parece herdado de Jimi Hendrix a ter um papel determinante na sua amplificação, não sendo por acaso que, tanto no disco como no filme, a canção surge no final, apoteoticamente.
Nesses anos apenas a digressão que se seguiu ao lançamento do álbum e do filme não correu como inicialmente antecipara. Inicialmente estavam previstas cerca de 100 datas por todo o mundo. Mas depois de seis meses de concertos pelos Estados Unidos saturou-se e resolveu dar por terminada a digressão, sem datas internacionais. Quem o rodeava levou as mãos à cabeça. Mas desta feita já ninguém ousava fazer-lhe frente. Já estava a produzir um novo álbum e isso parecia-lhe ser mais importante.
Os efeitos de Purple Rain ainda se faziam sentir por todo o mundo. Toda a gente o prevenia que ter dois álbuns em simultâneo nas lojas seria confuso para os consumidores, mas ele queria lançar o novo disco. E foi assim que Around The World In A Day (1985) subiu com rapidez aos primeiros lugares dos topes, mas as vendas da banda-sonora desaceleraram. O reinado de Purple Rain parecia ter acabado. Mas não interessava. Havia posto no mercado um álbum numa direcção diferente do anterior, mostrando que era capaz de se reinventar sem ter que se ajustar sempre ao centro do mercado. E foi assim que se impôs ao mundo. Como uma mente livre. Não já como uma síntese concluída da história do rock e da soul, mas como um dois mais notáveis e completos artistas do seu tempo.