A estreia de Jóia e o fascínio de Ney
A apresentação do Pedro Jóia Trio nos Jerónimos, com uma participação fascinante de Ney Matogrosso, em 26 de Junho, resultou numa bela noite. Mas há falhas a corrigir.
Não podia ter havido melhor cenário para o trio de Pedro Jóia apresentar oficialmente o seu disco de estreia: os claustros do Mosteiro dos Jerónimos, em Belém. E foi uma bela noite, aquela que ali se viveu na apresentação de Vendaval, primeiro disco deste projecto que une Pedro Jóia (guitarra clássica) a João Frade (acordeão) e Norton Daiello (baixo eléctrico) e que, com razão, o entusiasmou e entusiasma. Mas como não há bela sem senão, a pedra manuelina é tão atractiva na sua beleza quanto traiçoeira na acústica. As reverberações que se sentem nalgumas naves de igreja, dando uma sensação de eco às vozes, também ali se sentem, embora com menos intensidade; e, num repertório tão ritmicamente vivo quanto o do trio, isso acaba por trair o almejado equilíbrio original. Quem os ouviu no Jardim de Inverno do São Luiz, em 2014, pôde sentir a diferença, apesar do visível empenho e coesão harmónica dos mesmos músicos nos Jerónimos. E se isso não foi suficiente para arruinar um espectáculo digno de aplauso, debilitou-o em parte, em detrimento dos músicos e do público – tendo este último ainda de enfrentar um erro de planeamento: o palco foi colocado num nível demasiado baixo em relação à plateia (composta de cadeiras assentes sobre a relva dos claustros), pelo que à maioria era apenas dado ver a cabeça dos músicos e não os seus movimentos. Mas como um concerto vive de dois componentes, o visual e o auditivo, sugere-se que de futuro o palco seja mais elevado em relação à plateia, de modo a permitir ver, e não apenas ouvir, os músicos.
Voltemos ao “melhor cenário” do início e à música que ali se ouviu: Pedro Jóia entrou e, primeiro sozinho, deu-nos a ouvir variações em torno de temas de Carlos Paredes, uma rapsódia onde incluiu a Dança dos Montanheses e o tema dos Verdes Anos. A entrada de João Frade e Norton Daiello manteve, no início, a fonte nas composições guitarrísticas, com Meditando, de Armandinho, entrosado no Fado Lopes. Nessa altura, ainda o baixo soava demasiado baço, não estando o som dos três instrumentos devidamente equilibrado como se imporia, o que foi sendo corrigido até se atingir um nível satisfatório. Depois veio um tema de Norton, Se correr o bicho pega, um baião, a que se ligou naturalmente Feira de mangaio, do multi-instrumentista paraíbano Sivuca (1930-2006). Aqui entrou um convidado, Vicky, no cajón (o trio não tem percussão residente, apostando na rítmica imprimida aos instrumentos por cada um dos seus componentes), para uma homenagem a Paco de Lucía, seguindo-se Evocação a Luiz Gonzaga, com Asa Branca citada pelo meio. O sétimo tema da noite foi o corridinho que inspirou todo o projecto, há já alguns anos, Alma algarvia (de José Ferreiro pai), terminando a fogosa prestação do trio com Zyryab, de novo Paco de Lucía mas agora com sugestões flamencas e arabizantes a um só tempo.
Os muitos aplausos coincidiram com a entrada de palco de Ney Matogrosso, entrada discreta mas logo notada e celebrada com redobrada ovação. Começou com Balada do louco, mas podia ter começado com qualquer outra: a sua presença em palco dispensa máscaras, apesar de muitas vezes recorrer a elas nas suas composições coreográficas; porque máscaras trá-las ele na voz, no corpo, nos gestos, sobretudo no olhar, agudo e penetrante como o de uma ave altiva. Ney é Ney e na história da música brasileira, por mais génios que haja e há, ninguém se lhe assemelha na sua singularidade magnética e camaleónica. O trio, aqui ajustado aos temas de Ney e aos necessários rearranjos (de novo com Vicky), esteve à altura do desafio. Sangue latino soou magnífico e Rosa de Hiroshima arrepiante. Não era preciso, nessa altura, cativar o público, ele estava já rendido, fixado naquela voz e naquela figura majestosamente desafiadora. Duas nuvens antecedeu O mundo é um moinho, naquela que é uma das melhores (senão a melhor) versões do belo e dorido tema de Cartola e, por fim (não seria ainda o fim), Bandoleiro, recebido em absoluta euforia.
Insistentes aplausos obrigaram Ney, o trio de Jóia e Vicky, a dois regressos ao palco. O primeiro com Assim assado (um tema do tempo dos Secos & Molhados, que Ney integrou nos anos 1970 antes de se lançar numa carreira a solo) e o segundo com Bandoleiro, repetição que ninguém contestou e todos aplaudiram com entusiasmo.
Breves notas finais: Ney Matogrosso agiganta (e agiganta-se em) qualquer palco que pise. O dos Jerónimos não foi excepção. Vê-lo e ouvi-lo é sempre um prazer extraordinário. Em 2018 talvez o tenhamos de volta com um novo projecto. Prepararem as agendas.
Os claustros podem e devem ser usados com maior regularidade, embora com natural parcimónia, para concertos. Desde que se acautelem as falhas já notadas, como a do nível do palco ou a do equilíbrio sonoro face aos caprichos naturais da sua acústica.
O projecto do Pedro Jóia Trio está para lá do que vimos em palco. Vale a pena ouvir o seu disco de estreia, Vendaval, que há-de chegar às lojas por estes dias, para perceber o real alcance das suas propostas musicais. O excelente nível dos seus membros, aliado ao ineditismo da formação (guitarra, acordeão e baixo eléctrico), justifica-o plenamente. Assim como o repertório escolhido para o disco, que merece, em casa, audição atenta.
Por fim: foi uma bela noite. Todos os músicos e intervenientes estão de parabéns. Assim se corrija o necessário para que, aos poucos, possamos elevar objectivos… e adjectivos.