Um ministério que não é deste país

Nos casos do CCB e de Évora 27, trata-se do destino de muito dinheiro público. Por que motivo se mexeria em equipas vencedoras senão por questões de clientelismo partidário e controlo político?

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Pouco tempo separa dois episódios graves nas organizações culturais portuguesas que são sintomas alarmantes de uma actuação inaceitável do Ministério da Cultura (MC). Em Évora, aconteceu a demissão de toda a equipa da Capital Europeia da Cultura 2027, após a coordenadora de missão Paula Mota Garcia ter anunciado afastar-se do projecto depois de o MC impor a nomeação de uma presidente, inventando uma função de autoridade política que nem sequer existia na candidatura vencedora (e, deste modo, adulterando a mesma candidatura). Em Lisboa, Francisca Carneiro Fernandes é exonerada da presidência do Centro Cultural de Belém (CCB) antes sequer de cumprir um ano em funções, sem explicação substantiva por parte do MC, interrompendo um projecto que, embora no início, já dava um novo fôlego à tão necessitada instituição.

Ambos os casos suscitaram críticas e consternação a nível nacional e internacional. Sete responsáveis de capitais europeias escreveram ao comissário europeu para a Cultura denunciando uma “interferência política” que transforma aquilo que era uma candidatura exemplar num exemplo do que não se deve fazer apenas dois anos antes da realização do projecto, fazendo perigar o programa de Évora para 2027 e todas as colaborações que estavam a ser desenvolvidas a nível internacional.

No caso do CCB, foram dezenas de teatros internacionais, festivais e redes europeias a contestar a exoneração de Francisca Carneiro Fernandes, mas também uma invulgar (para não dizer inaudita) carta da comissão de trabalhadores protestando contra a decisão da ministra da Cultura e exprimindo solidariedade para com a ainda presidente, realçando as suas qualidades profissionais e humanas e o seu trabalho importante de restruturação da instituição e de clarificação da sua missão.

Perante casos de tamanha gravidade, o alargado protesto a nível nacional é salutar e necessário, demonstrando o lugar central que a cultura merece na sociedade portuguesa. O que talvez seja invulgar é que a tradicional e lusitana dança das cadeiras por motivos político-partidários faça tanto ricochete no estrangeiro. É sinal de que as organizações culturais portuguesas trabalham cada vez mais numa lógica importante de cooperação internacional e tanto Paula Mota Garcia como Francisca Carneiro Fernandes são óptimos exemplos dessa construção em partilha que tanto poderia beneficiar o tecido cultural nacional. A consequência é que, quando o Ministério da Cultura português dá tiros no pé, a dor é sentida em toda a Europa.

Não está ainda em causa a competência dos futuros ocupantes de postos de direcção a convite do MC. Nuno Vassallo e Silva, por exemplo, fez um excelente trabalho à frente da delegação francesa da Fundação Gulbenkian. O que está em causa são as motivações de um Governo recém-chegado para decapitar projectos que estavam reconhecidamente a correr muito bem, recompensando a qualidade com a guilhotina e aproveitando o bom trabalho feito para colocar pessoas da sua confiança. Por que motivo se mexeria em equipas vencedoras senão por questões de clientelismo partidário e controlo político? Sem esclarecimento inequívoco por parte do MC, resta a interpretação de que estamos perante oportunismo e ingerência política, o que é de uma enorme gravidade.

Nestes dois casos, Évora 27 e CCB, trata-se do destino de muito dinheiro público, tanto saído do orçamento português como das instituições europeias e de parceiros internacionais. Esse dinheiro foi atribuído a projectos que foram altamente escrutinados e agora, sem sentir a necessidade de dar explicações públicas convincentes, o MC decide que esses projectos devem ser interrompidos e modificados.

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento de políticas culturais em Portugal tem sido a volatilidade de titulares da pasta desde a criação deste ministério há quase 30 anos. Se cada novo governante decidir que basta evocar “um novo rumo” para mudar as lideranças das instituições culturais sem clarificar de que rumo se trata, não há estabilidade que permita desenvolver qualquer espécie de política cultural. A isso acrescenta-se também uma ameaça permanente de ingerência governamental que é a maior inimiga da autonomia de programação e da liberdade artística das quais as instituições públicas deveriam ser o garante.

Este é o cenário de um país que já não podemos aceitar ser e que, acredito, já não somos realmente. Este tipo de actuação ministerial representa um regresso ao passado num país que devia, pelo contrário, acelerar na direcção do futuro. Quando os desígnios das políticas que emanam do MC deveriam ser a democratização e a descentralização da cultura e das artes (e tanto Paula Mota Garcia como Francisca Carneiro Fernandes eram e são motores essenciais desse movimento), o que nos chega do Palácio da Ajuda é uma lógica autoritária sem respeito pelos actores culturais e pelos públicos, um travão em vez de um impulso, o aproveitamento em vez do apoio. Estes dois episódios são inaceitáveis em democracia e já não correspondem ao país que somos. Este ministério já não é deste país.

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