"Brexit": é impossível que tudo fique na mesma
A volatilidade dos eleitores na Europa está a abrir as portas a cenários imprevisíveis.
1. Não vale a pena tentar prever aquilo que continua a ser imprevisível. A Europa estava à espera de uma clarificação eleitoral que reforçasse o poder da primeira-ministra britânica para se sentar à mesa das negociações. Até às eleições de quinta-feira, Londres apenas oferecia a promessa de um “hard ‘Brexit’”, insistindo num calendário que, à partida, os seus parceiros europeus não lhe queriam dar: negociar os termos da saída e, ao mesmo tempo, um acordo de comércio entre o Reino Unido e a União Europeia. Para Bruxelas, uma coisa só se pode fazer depois da outra, ou quando a primeira já estiver adiantada. A fase inicial implica temas muito delicados para Londres, como a conta do “Brexit” ou a liberdade de circulação, a grande preocupação de Bruxelas. Agora, tem pela frente um cenário de instabilidade política que reconduz as negociações à estaca zero. É muito difícil começar as negociações no dia 19 deste mês, como estava previsto. A Comissão não deixou, no entanto, de lembrar que o tempo continua a contar desde que o Governo britânico entregou em Bruxelas o pedido formal de activação do Artigo 50 do Tratado de Lisboa, no dia 29 de Março.
2. O que vai acontecer em Londres, depois de um resultado que, mais uma vez, ninguém conseguiu antecipar, pode não ficar resolvido rapidamente, como se nada tivesse acontecido. May já foi à rainha informá-la de que vai constituir governo, aliás, muito parecido com o anterior. Entendeu-se com os unionistas irlandeses para garantir uma pequeníssima maioria em Westminster. Os unionistas defendem um “soft ‘Brexit’”, sobretudo no que toca à livre circulação e ao mercado interno. No ar vai continuar a dúvida sobre se os conservadores a vão deixar em paz por causa do “Brexit”, ou se decidem “cortar-lhe” a cabeça. Os tories costumam ser implacáveis com os líderes que perdem. Basta lembrar o que fizeram a Margaret Thatcher em Novembro de 1990, quando consideraram que ela era uma ameaça à permanência do país na Comunidade Europeia. Thatcher foi a Paris para participar numa cimeira de celebração do fim da Guerra Fria. Quando regressou, tinha sido destituída pelo grupo parlamentar do seu partido. Foi a única vez que alguém viu um brilho de lágrimas nos olhos da Dama de Ferro.
3. Ontem, prevaleceu em Bruxelas a prudência e o bom senso. Jean-Claude Juncker não quis adiantar nada publicamente. Estava em Praga, numa conferência sobre segurança e defesa europeia (a nova prioridade da agenda da União). Apenas insistiu numa frase: “A Comissão está pronta para iniciar negociações amanhã às nove e meia da manhã.” Michel Barnier, o experiente ex-comissário francês que vai liderar as negociações, quis tirar qualquer pressão sobre Londres. Pediu paciência. Sabe que ter do outro lado da mesa um parceiro cujos objectivos não são claros é muito mais difícil. O mais que alguns, poucos, líderes europeus adiantaram foi reconhecer que, se antes o “Brexit” já era um esforço ciclópico, o novo quadro político torna tudo ainda pior. Merkel limitou-se a mandar dizer que não falaria do assunto, porque se trata de uma questão de política interna do Reino Unido. Em Lisboa, o chefe da diplomacia apenas sublinhou que Portugal negoceia com qualquer governo. Olhando para os resultados, é fácil de concluir que, com May ou sem ela, a maioria dos britânicos continua a preferir sair. A pergunta que se coloca é saber que caminho a primeira-ministra britânica vai tentar seguir. Foi ela que insistiu no “hard ‘Brexit’”, fazendo uma interpretação que se pode considerar abusiva do resultado do referendo. Tem condições para se apresentar agora como uma defensora de uma modalidade mais suave? A única pista nesse sentido foi dada pelo ministro responsável pelas negociações, David Davis, que admitiu que era preciso “reavaliar” a estratégia negocial britânica.
4. Se o “Brexit” é uma decisão vital para o Reino Unido, não o é menos para a União Europeia. Como lembrava há já alguns meses o director do European Council on Foreign Relactions de Londres, Mark Leonard, nem o Reino Unido nem a Europa podem esquecer-se do tempo em que decorre este divórcio inesperado. “Com ambas as partes a ignorar o declínio da ordem liberal, o processo do ‘Brexit’ pode vir a ser uma tragédia para o Reino Unido e para a Europa.” A segunda conclusão inevitável é que a volatilidade dos eleitores nas democracias europeias está a abrir as portas a cenários políticos cada vez mais imprevisíveis, sem que as elites os consigam entender, a não ser perante os factos consumados. As eleições francesas aí estão, no domingo, para confirmar aquilo em que há um mês ninguém apostaria: uma maioria absoluta de um partido-movimento que nasceu há um ano. Macron ganhou defendendo a Europa contra tudo e contra todos. Na Holanda, apesar de continuar sem governo, o populismo foi derrotado. Na Alemanha, assistimos a um combate eleitoral entre Merkel e Martin Schulz para ver qual dos dois é mais europeísta. Mas não vale a pena ter ilusões. As feridas da crise estão longe de ter sarado e os desafios que a Europa tem pela frente continuam a ser enormes. Convém a Bruxelas continuar a estender a mão ao Reino Unido em vez de tirar partido da sua inesperada fraqueza. Ontem, pelo menos, houve o decoro de ninguém esfregar as mãos de contente.