Identificado um circuito no cérebro para o amor monogâmico
Nos arganazes-do-campo descobriu-se, pela primeira vez, a ligação entre áreas cerebrais que são activadas para permitir a criação de vínculos duradouros entre os indivíduos.
O amor monogâmico acontece em algumas aves, como o mandarim, e em menos de 5% das espécies de mamíferos. Entre elas estão os seres humanos, os castores, as lontras, os lobos e os arganazes-do-campo. E paremos aqui. O arganaz-do-campo (ou Microtus ochrogaster) é o modelo animal ideal para se estudar o amor monogâmico. Estes pequenos roedores que vivem na América do Norte são um modelo de vínculo familiar. Logo assim que acasalam, os machos e as fêmeas preferem sempre a companhia do seu parceiro, andam sempre lado a lado e zelam muito pelos seus filhos.
Devido a estes roedores foi possível dar mais um passo em direcção à “fórmula” do amor monogâmico. Pela primeira vez, identificou-se no arganaz-do-campo fêmea o circuito neuronal em actividade e que é responsável pelo sistema de recompensa no cérebro, encarregue pelas emoções positivas, por exemplo. Este circuito permite o aparecimento do vínculo entre o casal. Os resultados estão publicados no site da revista Nature.
Se apenas agora se percebeu melhor o que permite a ligação duradoura ao parceiro, este estudo já tinha antecedentes. Robert Liu, da Universidade de Emory (na Georgia, Estados Unidos) e coordenador do trabalho, conta-nos que um dos autores do artigo, Larry Young (da mesma instituição), já estuda os vínculos monogâmicos através da neuroquímica e da neuroanatomia há mais de 20 anos. Portanto, já conhecia bastante bem as substâncias químicas e estruturas cerebrais envolvidas no amor monogâmico. Faltava saber qual era a actividade cerebral no momento das interacções.
Mas recuemos até 2004, ano em que foi publicado um estudo na Nature, por outra equipa, que comparava duas espécies de roedores do género Microtus: o arganaz-do-campo, que é monogâmico, e o arganaz-montanhês, que é poligâmico. O estudo mostrou que antes do acasalamento a relação dos machos arganazes-do-campo com os outros machos e com as fêmeas era igual. Mas bastava um dia de acasalamento para que o macho ficasse agarrado à fêmea o resto da sua vida. Observou-se então que era a produção de vasopressina – conhecida como a “hormona da fidelidade” – que depois do acasalamento determinava o vínculo do macho. Já o arganaz-montanhês tem poucos receptores da vasopressina nos neurónios.
Em 2013, uma outra equipa voltou a dar um novo passo: na revista Nature Neuroscience, um artigo mostrava que a activação de certos genes no cérebro do arganaz-do-campo estava na origem do comportamento monogâmico. Uma maior actividade desses genes permite o fabrico de hormonas como a vasopressina e a oxitocina. O acasalamento nesta espécie aumenta assim os níveis da oxitocina (a hormona do “carinho” produzida no hipotálamo) e da vasopressina. Já quando os investigadores bloqueavam a produção de oxitocina e vasopressina no cérebro destes roedores, essa ligação não acontecia.
E o que se observou agora? “O estudo descreve pela primeira vez novos detalhes sobre como as relações sociais são formadas”, responde ao PÚBLICO Robert Liu.
Ora a equipa descobriu que existem oscilações rítmicas de grupos de neurónios no córtex pré-frontal – uma área do cérebro que envolve, por exemplo, a tomada de decisões – que controlam o que se passa noutra zona do cérebro. Ou seja, controlam a oscilação de populações de neurónios situados no núcleo accumbens, uma área cerebral envolvida no prazer, na recompensa ou no vício. Esta ligação é o circuito corticostriatal. “Mostrámos que o fortalecimento do controlo da ligação entre o córtex pré-frontal e o núcleo accumbens permite prever quão rapidamente os animais vão começar a mostrar comportamentos afectuosos, semelhantes aos das pessoas que se apaixonam mais depressa do que outras”, explica o investigador.
Além disso, Robert Liu destaca que, quando os animais acasalam pela primeira vez, o controlo do sistema de recompensa nesse circuito “aumenta drasticamente”. “Pensamos que este controlo cortical no sistema de recompensa permite codificar a nível neuronal as características do parceiro (os odores ou sons) para serem impressas no sistema de recompensa, para que o parceiro seja ele próprio recompensado.”
E nos seres humanos?
Para chegar a estas conclusões, a equipa usou uma técnica para activar este circuito, a optogenética, que combina a luz, a genética e a bioengenharia. Esta técnica foi usada nas fêmeas activando-se uma proteína sensível à luz nos neurónios, que ilumina o sistema de recompensa. Percebeu-se então que esta actividade do circuito corticostriatal não está apenas relacionada com o comportamento monogâmico, como também o acelera. Perceber se este circuito é mesmo essencial para a criação de vínculos entre os indivíduos é o passo seguinte da investigação, diz a equipa.
Já agora, onde ficamos nós próprios no meio de tudo isto? “A monogamia nos arganazes-do-campo não é exactamente como o amor dos seres humanos. Mas acreditamos que a monogamia nos arganazes-do-campo partilha muito do seu mecanismo neuronal com a paixão nos seres humanos”, afirma Robert Liu. Além disso, é difícil estudar o amor monogâmico na nossa espécie. “Como humanos, temos noção dos sentimentos que temos quando vemos imagens dos nossos parceiros românticos, mas, até agora, não sabemos como funciona o sistema de recompensa do cérebro que conduz a esses sentimentos”, refere Elizabeth Amadei, também da Universidade de Emory e autora do trabalho, num comunicado da sua instituição.
Para os mais românticos vem aí uma má notícia. “Não fazemos estes estudos para descobrir os segredos do amor”, avisa Robert Liu. “São sobre questões mais fundamentais de como funcionam as nossas relações sociais com os outros, o porquê das pessoas gostarem do seu companheiro, e como planear terapias usando tecnologias futuras para melhorar a qualidade de vida de pessoas com problemas de funcionamento social, como o autismo, a esquizofrenia e a sociopatia.”