Eles abusaram e agora a língua é que paga
Do “inteletual” ao “óvio”, os disparates induzidos pelo acordo ortográfico são uma praga que veio para ficar.
Uma antiga e célebre canção brasileira, intitulada Você abusou e gravada em 1971 pelos seus autores, a dupla baiana Antonio Carlos e Jocafi (que já tem sido, por clamoroso erro, confundida com Antonio Carlos Jobim), diz a dado passo: “Se o quadradismo dos meus versos/ Vai de encontro aos intelectos/ Que não usam o coração como expressão”. Intelectos com CT, como se escreve e diz em português de qualquer continente, à semelhança de vários outros idiomas. Veja-se, por exemplo: intelecto (espanhol, galego), intellect (inglês, francês, holandês, luxemburguês, corso, frísio, havaiano), intellekt (alemão, dinamarquês, norueguês, sueco), intel-lecte (catalão), intleacht (irlandês), intelletto (italiano, aqui com o T dobrado em vez de CT), intellett (maltês, também com T dobrado), intelekt (albanês, bósnio, checo, croata, eslovaco, polaco), intelekts (letão), intelektas (lituano), intelekto (esperanto) e, na raiz de todas elas, intellectus (latim).
Pois há dias a agência Lusa emitiu uma notícia intitulada “Lenine Cunha eleito melhor atleta do mundo com deficiência inteletual”. Assim mesmo, sem C. No texto, a palavra intelectual vinha escrita correctamente, mas no título não. Sucede que a tal notícia foi publicada, sem correcção do erro, em vários órgãos de comunicação online (até no PÚBLICO, mas prontamente corrigida após escassos minutos de desatenção) e assim se manteve sem alteração, no mínimo nas 24 horas seguintes. Pelo menos nestes: Record, Sapo, Visão, TSF e WN.com. A RTP, honra lhe seja feita, publicou o título com a palavra corrigida e outros órgãos escolheram títulos diferentes, evitando o erro. Como fez a Rádio Comercial: “Lenine Cunha eleito melhor atleta paralímpico do ano.”
Pode dizer-se: gralha. Antes fosse. É, isso sim, resultado da estapafúrdia reforma ortográfica que nos tentam impingir há anos com resultados confrangedores. Dirão: mas o acordo está certo, não sabem é aplicá-lo. O sujeito do costume até dirá: “Leiam a nota explicativa, está lá tudo!” Pois. Mas o caso do acordo ortográfico é rigorosamente idêntico ao de certas ideologias. Dizem-nos que são boas, só que, azar dos azares, têm sido sempre mal aplicadas. Falso. É precisamente nas cartilhas “mal aplicadas” que reside a génese dos erros (e até crimes) em nome delas cometidos. O mesmo se pode dizer, até com benevolência, do chamado acordo ortográfico de 1990. O “inteletual” da Lusa não foi um erro passageiro. Antes dele, coligidos pacientemente no Facebook dos Tradutores Contra o Acordo Ortográfico, já tínhamos lido (com origem em vários documentos oficiais, jornais, comunicados, etc), “desenvolver o inteleto”, “festa inteletual”, “do seu inteleto”, “a cargo do inteleto”, “inteleto e caráter”, “capital inteletual”, “inteletual criativo”, etc. Isto e disparates idênticos, apenas pela supressão de consoantes a esmo: “pato” (por “pacto”). “frição”, “fatualmente”, “latose”, “otogenária”, “setuagenários”, “espetável”, “conceção [do visto]”. Foi a ideia de que a reforma do português se baseia na supressão de consoantes que levou, certamente, um funcionário aplicado a mandar escrever “exeto universidade” (por “excepto”) num sinal de trânsito há tempos colocado em Lisboa. E é essa mesma supressão de consoantes que leva várias pessoas a dizer “óvio”, “oviamente” ou até “corruto”. É óBvio que a esta guerra mal começou.
Claro que, dizem, se lessem a base explicativa, se conhecessem o acordo, nada disto sucederia. Verdade? Mentira! Os correctores (agora corretores, como os da Bolsa) dão sugestões díspares, as facultatividades e duplas grafias abundam, a ignorância suplanta o conhecimento e, somando tudo isto, erra-se. Muito. E vai errar-se mais. Por culpa das regras, porque estas estão pejadas de erros, e não apenas pela ignorância, cada vez maior, nesta matéria. É comum ouvirmos dizer, até por parte de pessoas muito rodadas na escrita (como alguns professores, inclusive catedráticos): “Parece que já não sei escrever português, cada vez tenho mais dúvidas.”
Voltando à canção de Antonio Carlos e Jocafi, ela diz: “Você abusou/ tirou partido de mim, abusou”. Pois foi, abusaram. Contando com a inércia de muitos e a credulidade de alguns. Mas não é demasiado tarde para inverter o rumo.