As duas guerras da guerra
A série documental de Joaquim Furtado A Guerra está a ser editada em DVD com livros assinados por Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes. Este é o prefácio do volume quatro — O início.
Numa altura em que as representações da guerra colonial, em larga medida, ainda se refugiavam em tabus e silêncios comprometidos, ou se dispersavam por um memorialismo ou por uma ficção de natureza avulsa, em que eram escassos os trabalhos académicos sobre o tema, em que a sociedade parecia espiar, acabrunhadamente, a responsabilidade de uma derrota histórica, o trabalho para a RTP de Joaquim Furtado sobre A Guerra constituiu uma viragem decisiva.
Nessa longa série televisiva sobre a guerra colonial, Furtado compilava paciente e rigorosamente, segundo um projecto absolutamente pioneiro, a mais vasta série de depoimentos e de fontes audiovisuais sobre esse que seria o conflito que geraria a crise terminal da ditadura portuguesa. Não era uma colecção sem critério. O propósito era documentar, sobretudo com fontes orais, neste caso protagonistas dos dois campos em confronto, todos os principais aspectos respeitantes às origens, evolução e desfecho da guerra colonial: a política, a estratégia militar, as grandes operações, o dia-a-dia nos aquartelamentos e nas bases guerrilheiras, a morte, o sofrimento, a tortura e os massacres, as relações com a população, a derrota e a vitória. Tudo isso pelos olhos e memória dos actores políticos e militares de cada um dos lados da guerra, mas sempre em confronto com a documentação disponível (os textos, os filmes, os sons).
O esforço do autor não foi tanto para o labor interpretativo, ainda que ele, naturalmente, se pressinta na metodologia seguida. Mas em alinhar, com notável equilíbrio entre os vários lados do confronto, os testemunhos, os relatos, as visões, por forma a que o espectador ou o utente da série possa, por si, construir a sua interpretação. E nada de importante fica de fora: da repressão da Baixa do Cassange a Wiryamo, do 4 de Fevereiro ao 25 de Abril, da operação “Mar Verde” ao “Nó Górdio”, de Cabora Bassa à “Guiné melhor”, de Spínola a Amílcar Cabral, dos nacionalistas torturados na Machava à acção “psico-social”.
Como penso que o título da série e da presente obra – A Guerra – na sua singularidade não traduz uma concessão aos nostálgicos do “império” e do “ultramar”, creio que ele quererá dizer que naquela guerra houve duas: a guerra colonial de um regime que lutava contra os ventos da história e a guerra de libertação nacional que se inspirava nesse sopro de mudança. É essa complexidade que o trabalho de Joaquim Furtado logrou abordar com assinalável rigor e sobriedade. Depois dele, toda a investigação histórica sobre a guerra se passou a fazer de maneira diferente.