Miguel-Manso entra em cena

Rosto, Clareira e Desmaio serviu de base a um espectáculo teatral. Há um sopro de presenças que se insinuam, a silhueta de cenários que se pressentem. A poesia é, aqui, uma linguagem que está a caminhar para o palco.

Foto
O livro de Manso serviu de base a um espectáculo que esteve em cena na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, com direcção e encenação de Susana Vidal Miguel Manso

Miguel-Manso esteve entre os finalistas do Prémio Casino da Póvoa, com Persianas (Tinta-da-China, 2015). Acaba de publicar Rosto, Clareira e Desmaio, que se constrói nas margens de um trabalho de antropologia de Paulo Valverde: Máscara, Mato e Morte (Celta Editora, 2000). O livro de Manso serviu de base a um espectáculo que esteve em cena na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, com direcção e encenação de Susana Vidal.

Entrevistámos o poeta já muito depois do fim da festa, também conhecida por Correntes D’Escritas. E era de fim de festa o ambiente que se vivia em seu redor. De quando já se acalmaram ou apagaram até para o ano as luzes dos holofotes.

Em contraste com Persianas, Rosto, Clareira e Desmaio é um breve respirar. O poeta falará, a certa altura, da ideia de um “libreto”. Assim esteve para ser, este caderno. Não foi bem isso que aconteceu, pois não houve oportunidade de usá-lo como “folha de sala”, como lembra – embora acrescente que alguém “mais curioso ou mais informado” pudesse adquirir o livro e acompanhar o texto à medida que assistisse ao espectáculo. De certa forma, aquela intenção de fazer de Rosto… um libreto materializou-se, apesar de tudo, num escrito conciso e manuseável, com o fôlego distribuído por distintas falas, o sopro de presenças que se insinuam, a silhueta de cenários que se pressentem. É a aparição fantasmática de um espaço desconhecido em que se pretende penetrar, lugar de um mundo natural em que o sujeito é o portador da artificialidade, que deve perder, na busca daquilo a que o poema chama “olhar leve”, isto é, “capaz de considerar os invisíveis”. A poesia é, aqui, uma linguagem que está a caminhar para o palco. Esta urgência, a rapidez e intensidade com que se construiu o texto, e também aquela que condicionou a sua relação com o espectáculo, coincidem com a pulsação nervosa e com a batida rápida que percorrem Rosto… E se o autor pôde escrever “A mira do meu interesse hesita entre múltiplos alvos”, os esforços do poema concentram-se no tratamento enérgico de uma matéria que claramente se especifica, com a sua gramática e um léxico próprio dos seus processos – “A floresta é o próprio Tempo, clorofilino.”

Tentando explicar o modo como se concebeu, nasceu e se desenvolveu este projecto, o autor opõe a habitual demora a que submete o seu processo criativo e a celeridade com que tudo aconteceu desta vez. Uma quase simultaneidade entre o acto de escrita, a sua materialização em livro e o concretizar de tudo sob a forma de espectáculo teatral. Recorda Miguel-Manso que, no FATAL (Festival Anual de Teatro Académico de Lisboa) de há 3 anos, colaborara, como escritor, com Susana Vidal; no entanto, como nos diz: “não fiquei muito satisfeito, acabei por safar a coisa entrando em cena”. Desse trabalho passado, restaram, todavia, três núcleos temáticos que nitidamente ressalva: “a máscara, o bosque e o tempo”. Uma tríade que levou o poeta a procurar um livro já seu conhecido, embora, nessa altura, não o tivesse ainda lido: Máscara, Mato e Morte. E assim foram impondo a sua importância um artefacto pleno de ressonâncias simbólicas e grande importância etnográfica, como a máscara, mas também o tchiloli. Esse fenómeno sincrético, que funde teatro, performance, dança e canto, mescla a europeia matriz medieval com a tradição do espaço geográfico em que se desenvolveu: São Tomé – “a ilha é uma ideia arboriforme que a brisa sacode, a humidade/corrói./ Vista de cima a mancha púbica do verde/ promete a lascívia”.

Mais do que enquanto objecto científico, o livro do malogrado Paulo Valverde interessou a Miguel-Manso num sentido mais lato, como descreve: “O todo, a morte… A circunstância biográfica do autor”. A experiência nada teve da isenção fria de um acto laboratorial. Pelo contrário, houve um empenhamento complexamente pessoal, em que o sujeito escrevente e o objecto da escrita combateram, em que o “eu” e o “tu” foram falanges em dura marcha sobre terreno incerto e por mapear. “Dei por mim”, evoca Miguel-Manso, “aos 37 anos a escrever sobre um autor que morreu aos 37 anos. Ele foi fundo, como se vê.” Essa fundura, procurou-a o poeta através de sucessivas tentativas de despersonalização. O seu possível malogro resulta, porventura, da incapacidade do discurso poético de abdicar por completo da sua autonomia discursiva em função de uma espécie de expulsão rumo à abertura do palco. Ocasião para o autor confessar os limites, as fronteiras que são, no fim de contas, as dos géneros literários, mesmo quando a fluidez entre eles é um dos desideratos em apreço – “Queria ter conseguido ser menos eu, ter saído mais de mim, ter ido mais longe. Não em extensão, mas em intensidade, para outro sítio. Ainda me reconheço muito aqui.” Miguel-Manso reflecte com particular rigor acerca desse conflito entre linguagens, entre discursos literários complementares, mas fundamentalmente distintos – “Queria ser capaz de sair do registo [da poesia]. Só o consegui em certa displicência, na rapidez de um ‘Vai!’, na rudeza, no que está por esculpir, por burilar.”

Foto
Miguel Manso

Miguel-Manso compara a sua leitura do livro de Paulo Valverde com o comportamento de alguém que assiste a um espectáculo de tchiloli, que pode prolongar-se por longas horas. Alguém que pode interromper a sua presença numa secção do espectáculo – procissão, celebração religiosa, teatro –, voltando mais tarde ao mesmo ponto, ou àquilo em que, entretanto, ele se tornou. A sua leitura do livro de Valverde obedeceu à mesma errância desrespeitadora de uma ordem. Demais a mais Máscara, Mato e Morte constitui uma recolha póstuma, que mantém uma espécie de inacabamento latente, em que avultam sobreposições, desvios, transições. Em complemento ao livro de Valverde, e no sentido de determinar a “temperatura” do poema, para instigar a ignição que tudo permitisse pôr em marcha, Miguel-Manso diz ter precisado de um ponto de arranque. Foi buscá-lo a Uma Ilha em Sketches, de Photomaton e Vox, de Herberto Helder. Miguel-Manso apropria-se, de algum modo, da mitificação, da metamorfose feita sobre a formação insular, que surge no texto de Herberto, agora transposta da Madeira de Herberto para S. Tomé.

Seria tentador estabelecer um contraste nítido (e confortável) entre a demanda a um tempo esotérica e terrestre de Persianas e o intuito etnológico, a ambiência de estudo de campo, que anima Rosto, Clareira e Desmaio. Todavia, é o próprio autor quem esclarece que as dissonâncias poderão ser tão-só uma aparência de choque. E que, de uma análise menos apressada de ambos os livros, ressaltam pontes ocultas mas efectivas. Com toda a sua imersão no solo de uma abordagem antropológica, o novo livro de Miguel-Manso tem, nas suas palavras, “qualquer coisa de esotérico, de rito de passagem, de magia”. O acaso, a que chamará um “deus”, é por si descrito como uma força em permanente actividade. Cabe ao sujeito ser um receptáculo dele, ou propiciar a possibilidade de que esses receptáculos se materializem.

Um verso – “Nada sei, afinal.” – estimula a questão. Mais expressão, a poesia, ou mais conhecimento? As duas indissoluvelmente? “A minha vontade”, afirma o poeta, “não é conhecer, é expressar. Eu parto como qualquer outro artista partiria. Interessado no desenho, na forma. Quero trabalhar contrastes, composições”, esclarece. “É a montagem que me interessa no princípio. O que vem a seguir é sempre novidade.” O poeta mostra-se contrário a uma atitude, comum naquele que começa, de “querer mandar”, de “ser dono do poema”, porque este “vai sempre para outro sítio, e esse sítio é que é bom”, defende. O que nada tem de “místico”, assegura Miguel-Manso, que nada detecta no processo de “transcendental, excepcional”. O texto é, na sua óptica, aquela realidade dinâmica e fugidia que lhe dá a réplica permanente do “novo” – “A escrita traz-me novidades, traz-me aquilo que eu não sabia que sabia”. Este livro, em particular, teve pouca oficina, como explica o seu autor, mas teria sido difícil que tudo acontecesse de outra forma. Ao longo de todo o processo que o conduziu da concepção à escrita de Rosto, Clareira e Desmaio, Miguel-Manso diz ter falado “por ele” [Paulo Valverde], mas, explica, “não como antropólogo, como poeta”.

Sugerir correcção
Comentar