Fantasmas italianos

Sonhos Cor de Rosa não será o filme mais exuberante de Bellocchio mas atesta a bem a coerência da sua obra.

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A relação da distribuição portuguesa com o cinema de Marco Bellocchio foi sempre lacunar, e já não há modo de remediar isso porque vários dos seus títulos mais importantes (I Pugni in Tasca, de 1965, Salto nel Vuoto, de 1979, enfim, vários outros) ficaram por estrear em Portugal. Com Sonhos Cor de Rosa saltamos dois desde o último por cá estreado (Vencer, de 2009), mas apesar das lacunas, e se juntarmos ainda Bom Dia, Noite (cá estreado em meados dos anos 2000), é um filme que complementa uma boa perspectiva do que tem sido o trabalho recente do cineasta italiano. A forma narrativa de Sonhos Cor de Rosa é melodramática, porventura mais canonicamente melodramática do que Bellocchio alguma vez foi, tingida com tonalidade psicanalíticas que, se vão sempre bem com o melodrama, não são nada estranhas ao universo do realizador.

É a história de um miúdo, oriundo de uma família “normal” da classe média turinense nos anos 60, a quem a mãe morre súbita e inesperadamente. Dizem-lhe que foi um ataque cardíaco fulminante, mas o miúdo chega a adulto desconfiado de que nunca lhe disseram a verdade, que tudo não passou da mentira piedosa que é normal contar-se às crianças em casos destes. Sonhos Cor de Rosa, resumidamente, é a história da obstinação do seu protagonista pela investigação pessoal das causas da morte da mãe, ou seria melhor dizer obsessão, vivida quase como bloqueio. Quase anti-climaticamente, porque a verdade estava mais ao alcance da mão do que a personagem supunha, a revelação aparecerá (e numa das melhores cenas do filme, uma cena numa piscina, muito breve e muito “psicanalítica”, a revelação será superada, como se o homem assistisse, em diferido e em ambiente controlado, à morte da mãe).

Especial é o modo como Bellocchio pintalga esta história e a faz evoluir numa comunicação permanente com ecos da vida pública italiana das últimas décadas, desde o pós-guerra — os encontros com as figuras da finança e do mundo eclesiástico (os “cavaleiros da indústria”, a hierarquia religiosa, dois poderes capitais e nem por isso de imaculada clareza na sociedade italiana), as sombras trágicas colectivas como a representada pela memória do desastre de Superga que em 1949 matou toda a equipa de futebol do Torino. Mas mais especial ainda é a maneira como essas alusões e essas memórias colectivas são trazidas à textura do filme, recorrendo a uma arqueologia das imagens e dos sons populares (a televisão, a rádio, o cinema) que não apenas recriam uma época mas a enformam, e com ela enformam a personalidade do protagonista.

Os fantasmas da televisão (Belfagor) e do cinema (Nosferatu) passam do imaginário para a realidade, tornam-se a expressão palpável da dimensão sombria, inexplicada, invisível, da realidade — e aí tudo se liga, da mentira que obceca o protagonista aos muitos recantos obscuros, povoados por Belfagors e Nosferatus de carne e osso, da história recente italiana. Os “bei sogni”, os “sonhos cor de rosa”, do título, ressoam portanto de forma um tanto sarcástica, mas não deixam de ter uma manifestação em sentido próprio: são muito belas as cenas em que Bellocchio restitui a infância, feliz e doméstica, do protagonista, todo aquele arsenal criado pelos adereços e pela cultura popular de época a sugerirem eficazmente um tempo em que se respira uma inocência (e “inocência” porque inquestionável). Sonhos Cor de Rosa não será o filme mais exuberante de Bellocchio mas atesta muito a bem a coerência da sua obra; noção (“obra”) que é fundamental nele, cineasta tão mais notável quanto for tomado “cumulativamente”, com cada filme posto em articulação com os restantes em vez de ser visto como objecto disperso e isolado.

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Entrevista a Marco Bellocchio aqui

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