A Europa de Merkel ou a Europa de Schäuble?
A capacidade do ministro das Finanças alemão para criar eurocépticos é verdadeiramente inigualável. Certamente, muito maior do que a de Geert Wilders.
1.Não se pode dizer que tenha sido um sucesso o primeiro encontro na Casa Branca entre Donald Trump e Angela Merkel. Talvez fosse inevitável, mas não é certamente um bom sinal. A chanceler foi igual a si própria. Tinha uma mensagem a transmitir ao Presidente americano sobre os temas fundamentais da relação entre os dois lados do Atlântico, do comércio à defesa, passando pelo respeito dos valores que são comuns. Repetiu, ao seu lado, uma frase que já tinha dito em casa antes de partir: A Alemanha continua a ter uma dupla nacionalidade, alemã e europeia. “São duas faces da mesma moeda.”
É bom que a chanceler continue a ver o seu país assim, mas também é bom que Trump compreenda que a Europa em nome da qual ela (também) fala é um potência económica incontornável para qualquer actor mundial e que continua fiel à ordem liberal que os EUA criaram depois da II Guerra. O que se passou à porta fechada ainda não sabemos ao pormenor. O que sabemos é que Trump não gostou muito do que ouviu e não conseguiu disfarçar. A recusa em apertar a mão à chanceler, quando os jornalistas pediam e Merkel sugeria, é de uma deselegância que ultrapassa tudo o que possamos imaginar. Alguma imprensa admite que Trump não a ouviu, o que é bem possível. Mas a imagem ficou para o mundo inteiro ver.
Se restasse qualquer dúvida, a forma como decorreu a conferência de imprensa chega e basta para mostrar até que ponto Merkel e Trump discordam em quase tudo. O Presidente americano voltou a deixar claro que não vai aceitar o gigantesco défice comercial que tem com a Alemanha, o que quer dizer que pode recorrer às tarifas alfandegárias, hoje praticamente inexistentes entre os dois lados do Atlântico. Louvou a promessa de Merkel de gastar com a defesa os 2% estabelecidos pela NATO até 2024. Ela podia ter-lhe dito que não foi ele que a convenceu, foi Putin. Mas não deixou de insistir em que os europeus são grandes devedores em matéria de segurança e que vão ter de compensar as suas dívidas. Num tweet, posterior à visita, acrescentou que a Alemanha “devia uma vasta soma à NATO e aos EUA”, pelos serviços prestados neste domínio.
As relações com a Rússia passaram quase desapercebidas no final do encontro. Merkel apenas disse que o Presidente apoiava o acordo de Minsk e Trump elogiou o “great job” que a chanceler e Hollande estavam a fazer na Ucrânia. O nome de Putin nunca se fez ouvir. As relações, no mínimo promíscuas, de muitos membros do seu gabinete com Moscovo têm sido um dos aspectos mais controversos da presidência de Trump.
2.O Presidente atravessa um mau momento. Os tribunais impugnam sistematicamente as suas ordens executivas sobre quem pode ou não entrar nos EUA. Os serviços secretos do seu principal aliado europeu consideraram “ridículas” as acusações de que estariam envolvidos na espionagem ordenada por Obama à Trump Tower. O Senado também. O primeiro Orçamento da America First é de tal forma desequilibrado que já suscitou uma onda de críticas, entre as quais de várias dezenas de altas patentes do Exército na reserva. A questão é simples. Há um aumento brutal do orçamento do Pentágono, de cerca de 10% sobre uma verba que já deixa os Estados Unidos a anos-luz de qualquer dos seus adversários ou aliados. Quem paga a factura é a diplomacia e a ajuda ao desenvolvimento (para além dos serviços sociais, naturalmente), dois poderosos instrumentos do soft power americano.
Trump reafirmou que o seu objectivo é, por outras palavras, pôr o mundo todo em sentido, mesmo que às vezes isso não resulte. As declarações do secretário de Estado, Rex Tillerson, em digressão pela Ásia, sobre a Coreia do Norte são preocupantes, não por colocarem em cima da mesa o recurso à força (Obama fez o mesmo com o Irão), mas pelo que disse sobre o esgotamento das outras opções. A nova política externa de Trump quer fazer da China o principal adversário e da Rússia um “aliado”. O problema é que não há solução para a Coreia do Norte que não passe pela China. Ontem, em Pequim, Tillerson já foi bastante mais comedido. Enfim, as contradições são muitas, e isso não é nada tranquilizador A perda de influência dos Estados Unidos no mundo é vista com enorme apreensão na Europa, porque criaria um vazio que ninguém está em condições de ocupar.
3. Foi essa igualmente a preocupação de Merkel, na sua primeira vista à Casa Branca, para além da enorme preocupação com a cartilha proteccionista do Presidente, rasgando ou congelando acordos comerciais, que é altamente lesiva para a Alemanha e para a Europa (para não falar do Japão ou da própria China). Trump repetiu na conferência de imprensa que não era contra o livre comércio desde que fosse “justo”. E “justo” para ele é acabar com os défices comerciais que os EUA mantêm com vários países do mundo, a começar pela Alemanha que, como já sabemos, (ainda) não está disposta a enveredar por uma política expansionista dentro de casa.
Merkel levou consigo uma panóplia de propostas para ir ao encontro de Trump em matéria de desenvolvimento industrial. Mas nem aqui as coisas foram fáceis. Uma das imagens mais extraordinárias da visita é o rosto da chanceler, entre o divertido e o admirado, a olhar para Ivanka Trump, sentada ao seu lado, a explicar aos CEO das grandes empresas alemãs como é que se criavam empregos.
A questão dos refugiados também não deve ter sido fácil. Merkel fala em dever de acolhimento. Trump responde que é a concessão de um “privilégio”. O objectivo da chanceler era mostrar a Trump que a Alemanha (e a União Europeia) não era um inimigo, mas um amigo. Terá conseguido? Há 12 anos no poder, a chanceler já teve de lidar com outros “homens fortes” convencidos que poderiam intimidá-la. Mas tem plena consciência de que a relação transatlântica continua a ser fundamental para o seu país e para a Europa.
4. Enquanto Merkel dizia a Trump que a nacionalidade alemã continua a ser europeia, Wolfgang Schäuble tratava de provar o contrário em Berlim. O ministro das Finanças alemão resolveu advertir Portugal quanto ao risco de um novo resgate. A que propósito? Com que oportunidade, no preciso momento em que a Comissão reconheceu o esforço de redução do défice, considerando-o sustentável? Há a desculpa política. Schäuble não gosta da solução de governo que vigora em Lisboa. Coabita com o PSD no grupo do PPE e poderá ter ouvido Passos Coelho dizer que o diabo chegaria em Setembro (do ano passado). Nenhuma dessas razões justifica os seus avisos extemporâneos.
Mas há, talvez, outra razão para eles, que também não abona a seu favor. Berlim já deu como concluída a crise do euro. Entende que, a partir de agora, os países da união monetária têm de cumprir as regras e sujeitar-se às consequências, se isso não acontecer. É uma espécie de regresso a Maastricht e à cláusula do “no bailout”, acrescida do Pacto Orçamental. O Governo português tem uma visão diferente: é preciso concluir a união bancária e garantir que há instrumentos para fazer face a uma nova crise, num momento de enorme imprevisibilidade na situação internacional.
Outros países pensam da mesma maneira. António Costa disse-o na última cimeira de Bruxelas, provocando algumas reacções mais ou menos exaltadas. Pode admitir-se que a resposta veio agora de Schäuble. Serve para quê? Para rigorosamente nada, a não ser para criar desconfiança nos mercados A não ser que o ministro ainda não tenha desistido de recriar o euro, libertando-o dos “pesos mortos” do Sul. Se for assim, talvez não ande muito longe de Trump, nem irá contribuir para o fortalecimento da Europa, cada vez mais necessário perante a deriva americana. A sua capacidade para criar eurocépticos é verdadeiramente inigualável. Certamente, muito maior do que a de Geert Wilders.