“Há uma geração da utopia que até hoje não entregou os pontos” em Angola
Pepetela e Ondjaki abriram a edição deste ano do Festival Literário da Madeira, no qual se debate a literatura como resposta à Internet, num tempo em que a liberdade convive com o medo.
No palco, uma mesa, três cadeiras desiguais e um abajur a iluminar uma conversa com sotaque angolano. Pepetela, de um lado; Ondjaki, do outro. Fernando Alves, ao centro. Duas gerações (ou ruas, como Ondjaki as situa) de escritores do mesmo Sul.
Fala-se de guerra e das suas vítimas. Do escuro. Da poesia que se esconde num apresentador de meteorologia. De um país (que ainda) é uma utopia e da perspectiva que nós, portugueses, temos da forma como o regime angolano olha para a literatura e outras manifestações culturais.
“Nunca houve censura sobre livros. É diferente sobre jornais e outras coisas”, garantiu Pepetela, depois de Ondjaki lhe ter pedido, quase suplicado, que sublinhasse aquela verdade que tinha dito instantes antes. “O meu livro [Os Transparentes] é vendido no supermercado. Vai na segunda ou terceira edição”, respondia o Prémio Saramago 2014, a uma pergunta da plateia do Teatro Municipal Baltazar Dias, no Funchal.
Sala lotada, a abarrotar. 250 lugares, mais coisa menos coisa. Gente lá fora, sem lugar, para assistir à sessão de abertura do Festival Literário da Madeira (FLM) 2017. Ali no meio, a voz de alguém, africana de Moçambique, a falar sobre Os Transparentes que comprou, leu, gostou e aconselhou-o à sobrinha. Mas com uma recomendação. “Lê aqui, não o leves para Angola.”
Ainda a frase não tinha chegado ao fim, já Ondjaki abanava a cabeça. “Claro que pode.” E depois a história dos supermercados, e outra história. Em 2014, acabado de receber o Prémio Saramago, o escritor natural de Luanda viu-se envolvido por jornalistas. “Perguntaram-me se eu sabia quantos livros vendia em Angola. Respondia que não, que não sabia.” A resposta foi entendida de outra forma. Bem diferente. “Ondjaki não é lido em Angola.”
Daí esta urgência daquele que é um dos rostos da nova literatura angolana em desmistificar a forma como o poder angolano lê o que se vai publicando em Angola. E publica-se muito. Pepetela reconhece que não consegue acompanhar tudo o que vai saindo – Luanda não é uma cidade fácil para se viajar –, mas vão saindo coisas novas com regularidade. Pouco conhecidas cá fora, porque ainda não conseguiram descolar de Angola.
Ondjaki, talvez pela idade e pela disponibilidade que isso guarda, fala de uma geração, a dele, que faz – em contraponto com a anterior, que sobrevivia. “As ferramentas que uma geração tem para intervir é a formação, e a anterior não teve essa oportunidade.” A preocupação era sobreviver. Mover-se da guerra. “Em movimento não há formação”.
A guerra, tal como atravessou o país, é omnipresente na conversa. Pepetela foi um guerrilheiro durante a independência angolana. Ondjaki significa guerreiro em umbundu, a segunda língua em Angola. O que é isso de ir à guerra? “Marca?”, quer saber Fernando Alves, o dos Sinais da TSF, que conheceu em Angola esse amor de uma vida chamada rádio.
É Pepetela quem foge do estereótipo do combatente heróico e dilacerado pelas memórias. “Há coisas que se esquecem. Mas pior do que fazer a guerra, são as vítimas da guerra. Elas nada sabem, nem controlam. Apenas estão ali, no meio.” Como Ondjaki esteve, sem nunca combater. Combate agora, admite.
Mas ali, naquele palco, não há uma crítica incisiva ao partido que governa o país desde a independência. “Há muitos MPLA”, diz Ondjaki. “Há uma geração da utopia que até hoje não entregou os pontos”, acrescenta Pepetela – e deixa uma confissão. “Quando estava no governo, tinha uns 40 anos, sempre insisti que num país que tem uma esperança média de vida de 42 anos e meio, ninguém pode exercer um cargo público até aos 60.”
Existem, sabemos, casos desses. Mas não generalizemos, diz Ondjaki. O autor de Uma Escuridão Bonita ou Os Da Minha Rua defende que o paradigma de Angola começou a mudar em 2011. Só aí, diz, é que as pessoas começaram a habituar-se à morfologia da paz. Pena é que poucos façam das palavras profissão. “Há engenheiros. Médicos. Técnicos na administração. Mas poucos escritores, não sei porquê.” Existe aqui, mais que um lamento, uma constatação de Ondjaki. Aquele realismo que se funde com a geração utópica de Pepetela.
O mote para a conversa foi uma citação deste último: “Queremos transformar o mundo e somos incapazes de nos transformar a nós próprios”. Era isso que o programa do FLM anunciava, mas a tertúlia angolana, chamemos-lhe assim, derivou mais para aquele mundo que Angola encerra do que propriamente para o individuo. “Não podemos generalizar”, insistia, amiúde, Ondjaki. Generalização para o MPLA. Para aquela ou outra geração. Para um ou outro escritor.
O que fica da conversa – sintetizavam, já perto do final, os dois convidados – é a necessidade de colocar uma história de amor, mesmo num romance de guerra, e a certeza que devemos ensinar às crianças a tentar descobrir outras coisas no escuro, que não o medo.
E caiu assim o pano sobre o primeiro dia do FLM 2017, amputado da sua estrela maior, Svetlana Alexievich, Nobel da Literatura 2015, que não conseguiu derrubar os ventos cruzados do aeroporto madeirense – bastante condicionado nos últimos dias – e aterrar a tempo da abertura do Festival, que estava marcada para o dia anterior. “Até para o ano”, pediu para dizer à “Madeira tão bela como inacessível.”
O Festival, que decorre pelo sétimo ano, prolonga-se até próximo sábado. Esta quinta-feira, Valter Hugo Mãe e Sandra Nobre falam sobre a ideia de Millôr Fernandes: “A nossa liberdade começa onde podemos impedir a do outro”. À mesma hora, novamente Pepetela e Ondjaki juntam-se às voltas com a “solidão” de John Milton.
Pelo FLM 2017, este ano dedicado ao tema Literatura e Web – entre o medo e a liberdade, passarão nomes como Adam Johnson, Daniel Jonas, Eimear McBride, Frederico Lourenço, Viriato Soromenho-Marques ou Tatiana Salem Levy. “A literatura como testemunha do homem, num tempo em que tudo é etéreo e efémero”, vincou na abertura Francesco Valentini, director do FLM e da editora Nova Delphi, que coorganiza o evento, citando Zygmunt Bauman, o sociólogo polaco que passou por ali em 2013.