Com as recorrentes notícias da forma como as agências internacionais de espionagem acedem aos nossos dados pessoais gera-se uma nova forma de paranóia, ou talvez não. Estas agências, através das novas tecnologias de comunicação e informação, agora têm capacidade para nos vigiar sem precedentes, guardando registos de forma mais simples e barata.
Conspiradores e terroristas que se cuidem, pois o cerco aperta. Mas será que aperta assim tanto? Não será até um alívio saber que estas ferramentas ajudam a apanhar e desmontar o terrorismo organizado, mesmo que isto reduza a nossa suposta liberdade? Ou estaremos perante a concretização da distopia de George Orwell onde o “Grande Irmão” nos vigia constantemente para controlar todos os nossos passos na concretização da sua visão de sociedade gloriosa?
A existir, o “Grande Irmão” quer, mais que tudo, saber onde estamos, o que gostamos e quais os nossos hábitos de vida. Mas é um “irmão” comercial, quer saber tudo isto para intervir nos nossos hábitos de consumo. Estas informações tão pessoais que se acedem pelas tecnologias com conexões online são preciosas para as empresas que nos querem vender bens e serviços. São informações pessoais importantes para o mercado, mas, na prática, pouco relevantes politicamente. São os mercados quem verdadeiramente se interessa por estes dados, mais até que aos governos. Mas na rede, tal como hoje no exercício do Poder real, tudo se mistura.
Talvez seja apenas mais um efeito do individualismo contemporâneo pensar que as nossas conversas têm algum interesse político superior, especialmente em democracias capitalistas onde o poder político se diminuiu perante o poder económico. Esse poder económico quer, acima de tudo, controlar os fluxos financeiros, que são a base do seu domínio. Assim, estas redes de espionagem, nas suas versões mais desenvolvidas, mais do que controlo político ou das liberdades, servem para conhecer os consumidores e obter o máximo de lucro possível. É do interesse do poder económico operar em democracias livres e capitalistas, caracterizadas pelos elevados níveis de consumo. Assim dificilmente se mudará de regime para alternativas opressoras enquanto este modelo persistir. Nem a maioria esmagadora das pessoas desejam verdadeiramente mudar o sistema. Mesmo os movimentos antissistema parecem mais mobilizados e ganhar força quando determinados indivíduos ou grupos perdem a sua capacidade de consumo e qualidade de vida em detrimento de outros.
Como consumistas individualistas por inerência social, este tipo de gestão dos dados pessoais pode chocar-nos, por convicções de liberdade democráticas. Mas, no fundo, até nos dá jeito porque o que mais queremos é continuar a consumir, conhecer e aceder a outras opções de vida que nos façam felizes. Aqui o consumo não tem de ser forçosamente material, podemos valorizar simplesmente a possibilidade que estas redes nos dão em aceder a outros conhecimentos e formas alternativas de vida. Sem estas informações seria difícil direccionar determinada publicidade. Mesmo quem não queira consumir pode beneficiar destas redes invisíveis. Movimentos, grupos que defendem filosofias de vida alternativas, indivíduos e todo o tipo de micropoderes também beneficiam destas redes de gestão de dados, nem que seja na sua forma mais básica e indireta.
Perdemos liberdade real nestes processos? Talvez. Ficamos conectados a uma rede que sabe tudo de nós? Sim. Perdemos privacidade? Sim. A rede condiciona-nos verdadeiramente? Sim e não, pois é como se fosse uma “trela” de “rédea” ilimitada que só activa limites quando cometermos um crime. Sendo que em democracia as leis são aprovadas por maiorias diretas ou por representação, o perigo é teoricamente controlado e controlável. Neste modelo, na prática, podemos ir onde quisermos. Curiosamente, tudo aponta para que seja o próprio poder económico a lutar pela manutenção da liberdade, pois em liberdade consumimos mais.
O problema surgirá se algum dia o regime político democrático, capitalista, consumista deixar de existir e for substituído por outra coisa autoritária. Depois então podemos temer a nossa liberdade.