Dar a vida pelos filhos nas sociedades individualistas

Ser pai e mãe pode resultar num constante abdicar do individualismo. Tendemos a acreditar nisso, mesmo de forma inconsciente, provavelmente também por egoísmo

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Recentemente, numa conversa de família, perguntaram-me se eu daria a vida pela minha filha. A primeira tentação foi responder com um redondo “sim”, mas optei por um evasivo “provavelmente”. Isto chocou alguns dos interlocutores. Surpreendido com a pergunta, foi a resposta que na altura me parecia evitar o lugar-comum da resposta politicamente correta. Afinal de que serve dizer que “sim “ou que “não” quando estão em causa situações hipotéticas extremas e dramáticas impossíveis de viver apenas imaginando. Um “sim” seria tão falso como um “não”.

Mas isto fez-me pensar na questão enquanto a discussão se desenrolava à minha volta. Na prática, todos os dias, dou um pouco de vida pela minha filha. Trabalho mais e tento reservar o pouco tempo livre que tenho também para ela - pelo menos quero pensar que sim. Tendo em conta a finitude do tempo que materializa a vida, assim estou constantemente a dar a vida pela minha filha, tal como a esmagadora maioria dos pais pelo mundo fora. Não é um acto heróico, talvez apenas uma rotina e não o “dar a vida” num derradeiro clímax dramático hipotético impossível de racionalizar. Isto pode ser apenas uma percepção individualista, pois mesmo neste dar continuamos a centrar-nos em nós, especialmente quando se diz: “quero aproveitar o tempo com os meus filhos”. Ou seja, nós é que os aproveitamos e não o contrário. Será uma atitude social narcisista?

Ser pai e mãe pode resultar num constante abdicar do individualismo. Tendemos a acreditar nisso, mesmo de forma inconsciente, provavelmente também por egoísmo. No entanto, se não formos negligentes e desprovidos de emoções é comum o nosso “eu” passar para segundo plano quando temos outros seres que dependem totalmente de nós e que tantas emoções nos fazem sentir, algumas que nem fazíamos ideia poder experimentar.

Mas quem não tem filhos saberá realmente das restrições ao individualismo que sofre quem os tem? Será por isso que se adia a parentalidade ou se abdica por opção?

Ter filhos pode ser especialmente constrangedor nas sociedades de consumo em que vivemos, onde o hedonismo libertário se assume como um valor central associado ao individualismo consumista, direccionado para as realizações pessoais efémeras e imediatas, com aspectos positivos e negativos para os indivíduos e sociedades em geral. Para muitas pessoas os filhos encaixam perfeitamente nas suas aspirações individualistas, pois ter uma família e descendência podem ser objectivos de vida maiores. Para outras, quando experimentarem a parentalidade a fundo, não será de estranhar as tensões e frustração sentidas pela perda ou contração do “eu”. Talvez seja apenas a biologia a funcionar, mas felizmente para a grande maioria de nós a experiência é compensada por todas as coisas boas que os filhos proporcionam. Se assim não fosse estávamos civilizacionalmente em perigo, ainda que a pressão social para ter filhos funcione também eficazmente.

À medida que o individualismo se aprofunda e define as sociedades pós-modernistas consumistas em que vivemos, como será a reacção dos mais jovens perante estes desafios? A parentalidade será cada vez mais uma mera opção? Como se irá adaptar a sociedade a este novo desafio à medida que envelhece e que as suas fundações são invertidas e pulverizadas? Estaremos num momento chave da civilização? Continuará a haver a disponibilidade para assumir sacrifícios do individualismo em nome da descendência? Estará a sustentabilidade em causa? Talvez não, pois o individualismo nunca impediu o sucesso dos projetos colectivos, desde que assumidos em liberdade, quando a esperança é a felicidade.

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