Nos últimos 40 anos a sociedade tornou-se mais justa mas não mais solidária
Mudanças nas políticas de Justiça sempre que muda um Governo não ajudam a resolver problemas. Obra com olhar retrospectivo sobre as últimas quatro décadas do sistema judicial é lançada esta terça-feira em Lisboa.
Ainda é cedo para perceber qual o efeito da recessão económica no sistema de justiça em Portugal. A crise teve o ponto alto em 2013 e o livro 40 Anos de Políticas de Justiça em Portugal, que vai ser lançado nesta terça-feira no Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE-IUL, começou a ser pensado em 2015.
Nesta obra, é possível reconhecer os avanços da Justiça nos últimos 40 anos, o respeito crescente pelos direitos dos cidadãos (através da intervenção do Tribunal Constitucional ou da adesão de Portugal à Convenção Europeia dos Direitos Humanos), a maior exigência das pessoas ou a crescente tendência da Justiça para investigar e responsabilizar judicialmente os políticos.
O livro reúne artigos de académicos, advogados, magistrados e os testemunhos de ex-ministros da Justiça e ex-secretários de Estado, ex-presidentes da Assembleia da República, ex-bastonários da Ordem dos Advogados, ex-procuradores-gerais da República, juízes-conselheiros, ex-presidentes do Supremo Tribunal de Justiça ou do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, como foi Ireneu Barreto entre 1998 e 2011.
“Os testemunhos são em geral muito francos e cumprem essa função de olhar para o que se passou, de uma maneira aberta: para o que os [próprios responsáveis nos cargos] conseguiram ou não conseguiram fazer. É [uma leitura] importante para toda a gente, mas em especial para quem esteja agora no lugar deles”, diz o professor e investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, Pedro Magalhães, um dos coordenadores do projecto.
"O mais importante é que o livro não parte do princípio da crise [da Justiça]. Uma crise que dura várias décadas já não é uma crise, é uma condição estrutural. E tem que ser analisada de outra forma."
Além de Pedro Magalhães, a obra é coordenada pela ex-ministra da Educação e professora do Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE-IUL, Maria de Lurdes Rodrigues, e pelos professores e investigadores Nuno Garoupa da Texas A&M University School of Law e da Católica Global School of Law, Conceição Gomes, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e Rui Guerra da Fonseca, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Desconfiança nos tribunais
Numa entrevista conjunta, Pedro Magalhães e Rui Guerra da Fonseca partilharam algumas das principais mensagens deste livro que dá continuidade a projectos anteriores como 40 Anos de Políticas de Educação ou 40 Anos de Políticas de Ciência e de Ensino Superior, entre outros, coordenados por Maria de Lurdes Rodrigues e lançados pela Almedina.
Começando pelos aspectos mais positivos: o facto de Portugal ter “uma Constituição liberal democrática e um poder judicial independente é uma realização extraordinária”, diz Pedro Magalhães.
Por outras palavras, considera Rui Guerra da Fonseca "é absolutamente inequívoco que quem tem problemas laborais, com a administração pública, ou problemas civis, tem mais facilidade de acesso à Justiça do que há 40 anos.” Essa facilidade também é maior agora do que há dez anos? “Isso é mais difícil de dizer.”
Em síntese: “O sistema de justiça trouxe-nos um contributo absolutamente incontornável para uma sociedade mais justa. Mais solidária ou não, isso já é outro assunto, porque há os “have” (os mais ricos) e os “have nots” (os mais pobres)”, acrescenta Guerra da Fonseca.
Ao longo das mais de mil páginas da obra, são feitas análises, num registo descritivo ou explicativo, sobre o bom funcionamento da Justiça ou as suas falhas. As pessoas não têm confiança na Justiça, "mas isso nós já sabíamos", frisa Pedro Magalhães.
Portugal e os outros
O livro pretende ir mais longe também neste tema. “Não é apenas o problema da celeridade que afecta a confiança nos tribunais. É também a percepção de que os tribunais não conseguem resolver a desigualdade entre os que têm mais e os que têm menos. Os tribunais reproduzem essa desigualdade. Também existe a ideia de que os tribunais não são independentes", acrescenta Pedro Magalhães
"É uma percepção muito aprofundada”. E aponta: “Os que têm contacto com o sistema têm a mesma percepção do que aqueles que não têm."
Dados publicados nos artigos mostram que algumas dessas ideias são reeflexo de uma realidade concreta. No seu artigo Justiça: desempenho, custos e financiamento, Célia Costa Cabral, da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa, apresenta indicadores relativos aos 28 países da União Europeia (UE) calculados a partir das estatísticas da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ) do Conselho da Europa. Neles se constata que em Portugal o tempo (em média) de disputas civis, comerciais, administrativas e outras, até à decisão, em primeira instância, ultrapassou os mil dias (cerca de três anos) em 2010, muito cima do que aconteceu em todos os outros países nesse ano e nos seguintes.
A discrepância entre a (falta de) celeridade da Justiça em Portugal e nos restantes países da UE “não deixa margem para dúvidas relativamente à dimensão deste problema”, escreve a investigadora no artigo onde também se verifica, com base no mesmo tipo de estatísticas, que Portugal é o segundo mais lento – só ultrapassado pela Eslovénia – quando o indicador apresentado é o de processos pendentes civis, comerciais, administrativos e outros em primeira instância, por 100 mil habitantes.
Novo governo, diferente política
A descontinuidade nas políticas de justiça e as mudanças introduzidas sempre que mudam os governos não contribuem para atenuar os problemas. Um exemplo: o facto de este Governo reverter decisões tomadas pelo anterior no âmbito do novo mapa judiciário faz parte do conjunto de "mudanças frequentes" decididas "sem que as consequências do regime anterior tenham sido devidamente avaliadas", nota Pedro Magalhães. “Não quero pronunciar-me sobre a decisão concreta deste Governo. O que pergunto é: esta alteração baseou-se em que dados objectivos de avaliação do regime anterior? Não sei”, diz Pedro Magalhães.
As falhas da Justiça não podem ser apenas justificadas pela ausência, de recursos, juízes, funcionários, e por excesso dos processos que dão entrada nos em tribunais – esta é outra das leituras que se retiram do livro, indica Pedro Magalhães. Como mostra o artigo do professor e ex-governante João Tiago Silveira, mesmo quando o peso da litigância não aumenta, o desempenho dos tribunais continua a ser negativo, refere Pedro Magalhães. “O que o livro tenta fazer é apontar para outros caminhos”, diz o académico.
Por outro lado, acrescenta Guerra da Fonseca, "este conjunto de textos vem mostrar, em primeiro lugar, o reconhecimento para juristas e não juristas, do lugar central da Constituição e depois a importância da relação com o Conselho da Europa e com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos".
Pedro Magalhães reitera o que sugere o advogado Francisco Teixeira da Mota no seu testemunho: "As condenações de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos parecem ter melhorado, nalguns pontos de vista, o funcionamento da Justiça em Portugal e de alguma maneira a forma como os agentes judiciários estão despertos para estes problemas", diz o investigador.
Leis da austeridade
À luz da independência e legitimidade do poder judicial, e sobre as críticas do anterior Governo relativamente aos vetos dos juízes do Tribunal Constitucional, Pedro Magalhães considera que "as decisões de qualquer tribunal são para serem discutidas, elogiadas, criticadas, debatidas". E reforça: "Se não for assim é sinal de que o tribunal não é relevante."
Do tempo da crise (não da Justiça) mas da economia, Rui Guerra da Fonseca reconhece que "a jurisprudência da austeridade pôs à prova o Tribunal Constitucional, como nunca antes tinha acontecido".
Este livro, conclui o professor da Faculdade de Direito, vai aparecer aos juristas como “surpreendente”, “pela plêiade de autores com perspectivas diferentes, que apresentam dados diferentes, recolhidos de modo completamente diferente”. E também porque “vem lidar com uma realidade em que o debate é muito fechado”. A realidade das instituições do sistema de justiça.
Testemunhos de personalidades da Justiça
"Todas as leis estruturantes do poder judicial devem obter um largo consenso dos partidos representados [no Parlamento] para que não se assista a alterações legislativas ao sabor da conjuntura".
Luís António Noronha Nascimento Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (2006-2013)
"[Sinais da independência do Ministério Público] têm-se tornado evidentes no corajoso ataque em curso a variadas e gravíssimas formas de corrupção, que estavam silenciosamente corroendo os alicerces da nossa democracia e até da sociedade portuguesa".
João Bosco Mota Amaral Presidente da Assembleia da República (2002-2005)
"Assistimos hoje de um modo global, e felizmente, ao abaixamento do grau de tolerância às injustiças. Há mais direitos e maior consciência deles, há um maior poder reivindicativo, pelo menos por parte de certos grupos."
José Souto de Moura Procurador-Geral da República (2000-2006)
"Portugal foi sistematicamente condenado por violação do prazo razoável na sequência de inúmeras queixas apresentadas em Estrasburgo. Dos factores apresentados para o atraso processual, o único que permite a condenação de Portugal é o comportamento das autoridades competentes." Ireneu Barreto Juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (1998-2011)
"A Justiça de Portugal passou a respeitar mais os direitos dos cidadãos graças às condenações do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos." Francisco Teixeira da Mota Advogado
"Ao longo dos anos, houve diversas decisões do Tribunal Constitucional que densificaram de forma relevante direitos, liberdades e garantias dos cidadãos."
Francisco Teixeira da Mota Advogado
"A crise da justiça é mais uma crise de confiança na justiça. É fundamental por isso ter uma justiça transparente em que o cidadão acredite." Fernando Pinto Monteiro Procurador-Geral da República (2006-2012)