2,1% de défice? Que governo espectacular!
A bolha da inconsciência está outra vez em alta, para grande estupefacção daqueles que, como eu, vêem tudo novamente a repetir-se, perante a felicidade geral.
Alcançámos o défice mais baixo da História da democracia portuguesa (incrível). O desemprego continua a diminuir de mês para mês (espantoso). A economia cresceu 1,9% no último trimestre de 2016, a maior subida trimestral em três anos (magnífico). A confiança dos consumidores é a mais alta de sempre (estupendo). O crédito à habitação subiu 44% só em 2016, atingindo o valor mais elevado desde os anos pré-crise (maravilhoso). O consumo privado aumentou (formidável). E tudo isto graças à acção de um governo socialista apoiado pelo Bloco de Esquerda e pelo Partido Comunista Português, que devolveu rendimentos, repôs feriados e mostrou que afinal havia alternativa à austeridade (sensacional). Como é possível não reconhecer o quanto este país ficou a ganhar com a troca de Passos Coelho por António Costa?
Aquilo que eu acabei de escrever é aquilo que os meus simpáticos leitores de esquerda gostam de ouvir. Aliás, não gostam apenas de ouvir – eles estão convencidos de que só pessoas mal-intencionadas ou ideologicamente obcecadas (como eu) são incapazes de admitir as espectaculares melhorias na situação económica portuguesa. E estão convencidos de mais coisas, em particular esta: O TINA (There Is No Alternative) era só mesmo uma balela destinada a impor a agenda “neoliberal”. António Costa é tão, mas tão assombroso, que a solução da geringonça anda a ser estudada por toda a galáxia, e até a Associated Press (uma agência estrangeira, imaginem) espalha pelo mundo a boa nova: “Portugal’s government has proved its critics wrong”. Se a AP afirmou que provou, é porque está provado.
Quando leio estas coisas, de forma tão insistente e empenhada, hesito entre voltar a fazer a figura do chato da festa ou simplesmente encolher os ombros, e deixar metade do povo português voltar a curtir a alienação dos seus problemas, um dos pratos favoritos da dieta mediterrânica. Na economia fala-se muito em bolhas. A bolha imobiliária. A bolha tecnológica. A bolha financeira. A bolha chinesa. A bolha de 1929. Eu proponho que os economistas e psicólogos portugueses começam a teorizar sobre uma outra bolha, que atinge os portugueses há séculos com a regularidade de um relógio suíço: a bolha da inconsciência.
A bolha da inconsciência está outra vez em alta, para grande estupefacção daqueles que, como eu, vêem tudo novamente a repetir-se, perante a felicidade geral. Sim, o governo teve o mérito de se mostrar empenhado na redução do défice, e de confiar tão pouco na sua receita para o crescimento que a conjugação da travagem a fundo no investimento e do perdão fiscal acabou por produzir um défice que foi muito para além da troika. Nada que perturbe a esquerda, rendida que está às maravilhas da realpolitik e de uma frase tonta de Passos Coelho que tem sido a sua tábua de salvação – cada dia sem o diabo é um dia no céu.
Mas o céu não mora aqui. O crescimento diminuiu. A dívida aumentou (muito). Estamos totalmente dependentes do programa de compra de dívida do BCE. O rating do país é lixo. O aumento da confiança dos consumidores está a desequilibrar a balança externa. Voltámos a endividar-nos para consumir. As imparidades dos bancos são astronómicas. E os juros da dívida a dez anos aproximam-se dos níveis de 2010. No entanto, o povo por aí anda, cantando e rindo, acompanhado de um coro de leitores, colunistas e políticos que acham que Portugal é um oásis. Não há nada a fazer. A bolha da inconsciência é sempre a última a rebentar.