A revolução Trump
A situação internacional agravou-se. O Irão, a Coreia, a Rússia estão a testar o novo Presidente.
A minha geração teve a sorte de assistir a duas revoluções decisivas para a história de Portugal e do mundo: o 25 de Abril e a queda do Muro de Berlim. Temo que a minha geração vá ter o azar de assistir a outra revolução, igualmente importante (embora ainda não se possa dizer que seja decisiva) para a história do mundo: Trump. Perante o quotidiano dessa revolução, estamos a assistir a dias que são semelhantes ao vaivém dos soldados e marinheiros entre a frente da guerra e o Smolny, ou ao momento em que mais um bocado do muro era derrubado por multidões com garrafas de champanhe.
Usei desde o início a palavra "revolução" para designar a eleição de Trump, quando esta designação fazia franzir muitos sobrolhos, e vejo agora, sem prazer nenhum por ter “acertado”, o muito conservador Economist ter uma capa com Trump de cocktail Molotov na mão e um título “um insurgente na Casa Branca”. Convém mais uma vez prevenir que a palavra “revolução”, que choca muitos ser usada para falar de Trump, descreve momentos em que alguma coisa cria um ponto sem retorno na história, quando nada continua nem pode continuar como dantes, em que há uma aceleração do devir histórico percebida subjectivamente e com efeitos reais no mundo. Classificar alguma coisa de “revolução” é independente da valoração que damos aos seus intervenientes ou ao sentido em que as coisas mudam. Também haver ou não uma “revolução” não significa que, ao modelo da revolução bolchevique, ela tenha de ser violenta, como a queda do Muro o demonstra, mas o potencial de violência está sempre presente. A profunda e radical divisão que atravessa os americanos, com campos muito extremados, permite prever que é só uma questão de tempo até que se multipliquem actos de violência, como aqueles que marcaram a campanha de Trump, com o próprio a incitar à violência física dos seus apoiantes. Todo o discurso de Trump assenta numa grande agressividade, e isso polariza a favor e contra.
Para se perceber como é que não há saída que não seja tumultuária desta situação, pense-se um pouco em dois cenários absurdos: um é como esperam ingenuamente muito democratas nos EUA que Trump seja afastado do cargo por um processo de impeachment; outra é que Trump sobreviva os anos da sua presidência e perca as próximas eleições. Não adianta sequer estar a escrever artigos escolhendo uma hipótese sobre a outra, visto que ambas são cenários de saída muito improvável sem um rastro de conflito. Trump é apoiado por maiorias no Senado e no Congresso e tem o apoio de pelo menos metade dos americanos; logo, um processo de impeachment só pode ser possível pela divisão dos republicanos e será sempre visto pelos seus apoiantes como uma conspiração política contra o “seu” Presidente. E Trump fará tudo o que for preciso, declarações incendiárias, comícios (vai iniciar este fim-de-semana um ciclo de comícios como se estivesse em campanha eleitoral), manifestações, apelos à rebelião. You bet! Nixon saiu, porque estava na situação insustentável de ter permitido uma operação ilegal contra os seus opositores, mas não se vangloriou dela em comícios, e Clinton viu-se em dificuldades por uma aventura sexual, mas também não aparecia num filme a gabar-se de “grab them by the pussy”. Com Trump podem ter a certeza que irá gabar-se de tudo o que faz e, se não o fizer, podem ter a certeza que tudo será muito mais “negro” do que o Watergate. Trump está convencido da sua impunidade, para fazer e dizer o que quiser, e esse sentimento, que tem sido verdade até agora, é muito perigoso.
À data em que escrevo, os últimos tweets de Trump mostram o alcance da mudança pretendida. Qualquer comparação com Reagan ou Thatcher é completamente enganadora, porque, mais uma vez o repito, Trump não é um político conservador. Num deles, Trump refere o “sucesso” da sua última conferência de imprensa, um amontoado sem nexo de queixas, insultos e ameaças e elogia Rush Limbaugh, um popular autor de um programa de rádio, ultraconservador e atrabiliário. E acrescenta: “Fake media not happy!” Este é o mundo de Trump, irrascível e agressivo, mas também programático, como revela o segundo tweet em que anuncia que irá visitar a fábrica da Boeing na Carolina do Sul, em que recentemente os trabalhadores recusaram a sindicalização, sob enorme pressão patronal. Por último, anuncia uma espécie de “conversas em família”, sem contraditório.
Os efeitos internos da revolução Trump estão em pleno desenvolvimento, e é inimaginável vários anos disto – a relação esquisita, para não usar outro termo, com a Rússia de Putin; o contínuo discurso de mentiras, o ataque à liberdade de expressão dos jornalistas, impedidos de fazerem perguntas se são da “fake news”, em favor de uns obscuros media conservadores e religiosos, o ataque ao sistema judicial, as ameaças contínuas ao México e aos emigrantes ilegais, as políticas contra os pobres, a tese de que há um “deep state” escondido pelos democratas dentro do Estado que abre caminho à ameaça de saneamentos em série, a escolha de um governo de gente muito incompetente, reaccionária, mais do que conservadora, e com teses bizarras sobre tudo, do ambiente à ciência, da educação à guerra.
Se os riscos internos são enormes, os externos são muito piores. Trump não quer saber de política externa para nada, a não ser para projectar no resto do mundo as causas do declínio da América. A sua ignorância fá-lo fazer afirmações que mudam políticas solidamente estabelecidas, como a de “uma só China” ou de dois Estados na Palestina e em Israel. Até pode voltar atrás e desdizer-se, porque aqui ele verdadeiramente não se interessa, mas vai deixando um rastro de estragos para outros apanharem. Antes de Trump é obvio que o mundo era um sítio perigoso, como, aliás, é sempre. Mas depois de Trump, sem nenhuma razão que não seja a sua própria acção, numa altura em que não havia um crescendo de conflitos internacionais, a situação internacional agravou-se consideravelmente. O Irão, a Coreia, a Rússia estão a testar o novo Presidente, cuja actuação caótica (é mais exacto descrevê-la como caótica do que como imprevisível, porque isso dá um bom nome à imprevisibilidade) lhes dá novas oportunidades – e ele responderá levando para a arena internacional a sua política de gabarolice e ameaça, com riscos enormes.
Estamos a falar do Presidente dos EUA, o homem mais poderoso do mundo. Basta isto para percebermos o que está em jogo.
Nota: Já o disse e repito, pouco me interessa a política portuguesa face ao que está a acontecer nos EUA, mas a questão Centeno-Domingues-Marcelo é muito significativa do “estado” da política portuguesa, já não de agora, mas de há muito tempo. Centeno quis esconder a verdade – que tinha negociado com Domingues a possibilidade de o isentar e à sua equipa do controlo do Tribunal Constitucional – e fê-lo com declarações rebuscadas e contraditórias, penosas de se ouvirem. Ocultar a verdade no meu vocabulário é mentir. Infelizmente esta é uma prática que historicamente na vida política portuguesa é comum e não costuma ter consequências. É esta “história” que faz com que a agressiva oposição do PSD e do CDS não parta de uma posição de qualquer autoridade, mas do mero taticismo político. Não só governantes dos dois partidos mentiram, aliás, em matérias muito mais graves do que a de Centeno, como a maioria absoluta que tinham lhes deu um estatuto de impunidade que agora lhes choca em Centeno.
Mas, talvez o mais significativo, é percebermos como a sucessão de episódios de Centeno-Domingues se enrodilham numa corda cheia de nós com a contínua logomaquia do Presidente Marcelo. Talvez agora se comece a perceber como é negativo o constante comentário presidencial a tudo o que se passa à sua volta: é que, quando as coisas dão para o torto, ele fica lá amarrado com as suas sucessivas declarações quotidianas, que acompanham de perto a cobertura mediática e por isso ficam sujeitas às voltas e reviravoltas que estes “casos” dão. E, ao ficar apanhado num “caso” e ter de afirmar, contra-afirmar, rectificar, com o seu natural e muito forte desejo de “não se sair mal”, acaba por duplicar o carácter errático do fluxo comunicacional. Como Marcelo fala demais, fala demais na espuma quotidiana, fala demais porque se pronuncia sobre assuntos que não são da sua competência, banaliza a sua voz e desloca-a do sítio onde deve ser ouvida.