Caso encerrado? Só se estivéssemos lelés da cuca
Hoje não dou notas – porque se as desse ia tudo corrido a zero. Mas deixo muitas perguntas. E um alerta: por que é que querem decretar este caso encerrado?
Convém lembrar como é que isto começou. Em Outubro, Marques Mendes foi à SIC dizer o seguinte: o Governo mudou uma lei que tem como consequência a não apresentação de declarações de património da nova administração da Caixa. "É grave", disse ele, só não sabendo se foi propositado ou se foi sem intenção. Durante duas semanas, o próprio Marques Mendes (que é conselheiro de Estado) estava convencido de que não havia volta a dar: Domingues estava mesmo dispensado de entregar declaração ao TC. O PSD achava o mesmo - e foi Marques Guedes, um constitucionalista, que o disse. E até o Ministério das Finanças confirmou que não tinha sido um acaso, pela simples razão de que a CGD já tinha escrutínio suficiente do BCE.
Depois entrámos numa outra versão: o PÚBLICO escreveu, citando uma fonte do TC, que havia outra lei que, apesar da mudança da legislação, obrigava na mesma Domingues a fazê-lo. Os partidos da esquerda começaram a remexer-se, sem saber por que porta sair sem ferir de morte o Governo. E o Presidente da República, regressado de uma longa visita de Estado, fixou uma nova orientação: vincou que a nova lei se devia aplicar, mas que devia ser o TC a decidir (havendo, portanto, dúvidas). E até desafiou os partidos a mudar a lei caso o TC decidisse o contrário. Foi aí que António Costa fixou o discurso oficial do Governo: ficava tudo na mão do TC, mesmo que o PS fosse votando contra a tentativa de alteração da lei no Parlamento. Centeno, coitado, limitou-se a seguir o argumento.
Até este ponto, só António Domingues dizia que o assunto tinha sido discutido muito antes, tendo sido uma pré-condição à sua aceitação do cargo de presidente da Caixa. O Governo alegava que não. E até referia uma reunião do Conselho de Ministros onde teria sido explicitado (sem a presença de Centeno) que as declarações eram para entregar no Ratton. Tudo isso mudou esta semana.
Vamos, então, à terceira versão da mesma história: afinal, o assunto foi mesmo discutido em Junho. E foi discutido entre Costa e Marcelo, o Presidente. Sabemos que Marcelo resistiu, mas que há versões contraditórias sobre se o PR anuiu ou se, como alega o próprio, se manteve firme na recusa.
E daqui aparecem várias dúvidas. Se Marcelo recusou, como é que mantinha dúvidas sobre a aplicação da lei quando a bomba rebentou em público? Se estas matérias foram discutidas, porque é que Marcelo não disse nada na nota de promulgação? Se tudo foi discutido (até num Conselho de Ministros e com o Presidente) como é que ninguém avisou Domingues? E porquê?
Mas há mais espaços em branco nesta história: por que é que o Governo demorou um mês a publicar o decreto? Por que é que o Presidente demorou uma semana a publicar a nota sobre a promulgação? Por que é que só agora confirmamos que o assunto foi discutido e negociado antes? Por que é que Marques Mendes estava convencido que não tinham que entregar? Por que é que o ministro das Finanças dizia há uma semana que o CDS lhe estava a fazer um ataque "indigno" e, de repente, assume que talvez tenha existido "um erro de percepção" mútuo, dando explicações antes negadas e garantindo que esteve "de boa-fé" perante a comissão de inquérito (uma maneira juridicamente inteligente de se proteger)?
E sim, também António Domingues tem coisas para explicar. Como esta, muito simples: se esta pré-condição era tão importante, como é que ele, Domingues, nunca refere o Tribunal Constitucional nas 170 páginas de emails que entregou na comissão de inquérito? E onde estão os emails com as negociações até à versão final? E os sms, o que dizem? Eles não deviam ser disponibilizados (ou contados) à comissão de inquérito?
Devo dizer que teria dúvidas, muitas dúvidas, em dizer que sim a esta última pergunta. Mas não é possível admitir que Marcelo tenha passado do "sem nada escrito, não há caso" para um comunicado como o de segunda-feira à noite sem passar pelos malditos sms. E não é possível achar que eles foram suficientes para o Presidente mudar de ideias sobre o caso sem concluir, por maioria de razão, que o país tem que saber também o que eles dizem (sem saber até onde foram negociadas as intenções de isentar Domingues, por quem passaram e como terminaram). Gosto de saber que o Presidente da República concluiu, apesar de tudo o que soube, que o interesse nacional o leva a concluir que Mário Centeno deve permanecer como ministro. Mas numa democracia normal não cabe ao Presidente determinar esse julgamento sozinho, deixando-nos na penumbra sobre o que de facto aconteceu - ou achando que o caso fica "encerrado" com um comunicado seu.
É por isto tudo que o que se está a passar na comissão de inquérito à Caixa é grave - mesmo para lá da espuma da luta política. Uma comissão de inquérito potestativa é um direito fundamental da oposição, um dos que lhe permitem fazer uma fiscalização minimamente eficaz da acção do Governo. Se uma comissão é pedida potestativamente, dizem as regras que a oposição escolhe as regras do jogo, dentro do quadro legal que é entregue. Mas quando uma maioria se dispõe a bloquear-lhe todos os passos, incluindo pedidos de informação, quando lhe recusa sequer argumentos para justificar esse bloqueio, isso quer dizer que estamos perante um risco muito mais grave do que o da protecção de um par de sms: estamos perante a ditadura de uma maioria, que está a proteger um Governo. Governo esse que está protegido por um comunicado do Presidente, que dita a sua versão sobre o interesse nacional (sabendo nós agora que ele esteve envolvido no processo, bem ou mal). Se o PS não souber o significado de "ditadura da maioria", James Madison explica bem nos Federalist Papers, mas posso dar uma bibliografia extensa para ajudar.
Na prática, estão-nos a impor um caso encerrado, deixando-nos na penumbra de como tudo aconteceu. Deixando-nos na dúvida sobre o que vale a palavra de cada um dos intervenientes, de Domingues a Marcelo, passando por Centeno e Costa. Encerrado? Só se estivéssemos lelés da cuca.