CGD: uma comédia de enganos em cinco actos
Não há forma de Centeno sair bem disto – é evidente que ele mentiu. É evidente que ele tinha consciência das condições impostas por Domingues
Acto 1 – O convite a Domingues e as suas condições. No início, as intenções de todos eram as melhores. O governo apostou num banqueiro competente e independente para salvar a Caixa, dando-lhe carta branca para construir uma equipa sem amiguismos nem relações políticas. António Domingues aceitou o convite impondo duas condições: salários da administração em linha com o mercado e a dispensa de apresentar declarações de património. A razão era simples, embora discutível: Domingues entendeu que não conseguiria convencer os melhores a trabalharem com ele se as suas herdades, os seus carros ou os seus barcos acabassem expostos na praça pública. O governo aceitou essas condições.
Acto 2 – O descontentamento de Marcelo e a revelação de Marques Mendes. Marcelo, que engoliu a custo os salários da administração da Caixa (recorde-se que desde a campanha eleitoral o dinheiro é para si uma obsessão, dedicando-se a recorrentes demonstrações de poupança e frugalidade), a certa altura achou que não deveria ainda engolir (e o Tribunal Constitucional entretanto concordou com ele) a dispensa das declarações de património. Vai daí, Marques Mendes, que tem vindo a desempenhar o seu papel de porta-voz oficioso, largou a bomba a 23 de Outubro na SIC, denunciando a alteração da lei sobre gestores da CGD.
Acto 3 – A nova narrativa de António Costa. Dois dias depois, o ministério das Finanças confirmou que a mudança desobrigava a administração da Caixa de apresentar as declarações de património. Fê-lo tanto pela voz de Mário Centeno como num comunicado oficial enviado às redacções. Só que aos poucos, por pressão de Costa, a narrativa foi mudando, e Centeno foi-se enredando em não-ditos e explicações dúbias. O desejo de transformar Domingues no mau da fita, com o auxílio inestimável do Presidente da República, teve como efeito indirecto enredar Centeno numa trama de justificações manhosas e impossíveis de sustentar. O objectivo era claro: obrigar Domingues a ceder numa matéria de transparência muito sensível para a opinião pública. Só que Domingues não cedeu.
Acto 4 – A queda de António Domingues. De repente, toda a gente queria morder no seu pescoço: o PS deixava-o cair, PCP e Bloco nunca o apreciaram, Passos Coelho entrou em conflito com ele acerca do tema da informação privilegiada, e o próprio Marcelo – que ninguém me tira da cabeça que foi o primeiro responsável por tudo isto – acabou por sair de mansinho. Junte-se a pressão das empresas semi-falidas cujas imparidades Domingues fez questão de registar. Isolado e impossibilitado de cumprir aquilo a que se comprometera com os administradores da Caixa, António Domingues bateu com a porta. Só que estando uma comissão de inquérito a decorrer, instado a apresentar a troca de correspondência com o governo, mostrou o que tinha – e a narrativa construída por António Costa, que Centeno foi obrigado a seguir por arrasto, desabou como um castelo de cartas.
Acto 5 – A descredibilização de Mário Centeno. Não há forma de Centeno sair bem disto – é evidente que ele mentiu. É evidente que ele tinha consciência das condições impostas por Domingues. E tudo isto é evidente ainda antes de chegarem os mails e os SMS – no início do processo, foi o próprio ministro das Finanças que o admitiu. Dá-se então este extraordinário facto: um caso em que todos começaram com a melhor das intenções terminou no mais absoluto desastre. Na política como na vida, de boas intenções está o inferno cheio.