Os limites da democracia no século XXI
Em lugar de dizer apenas “Let´s make America great again” por que não dizer “Let´s make the world great again”, ou ainda, todos em uníssono, “Let’s make each of our countries great again”.
No Ocidente e nos finais do século XX, generalizou-se a ideia de que a democracia liberal parlamentar, nascida na Grã-Bretanha no início do século XVIII e posteriormente aperfeiçoada e enraizada na maioria dos países com economias avançadas, constituía a fase final do progresso político para a qual todas as nações se encaminhavam. Francis Fukuyama, no livro The End of History and the Last Man, escreve que a queda do muro de Berlim em 1989, a que se seguiu o colapso da União Soviética em 1991, foi “o término da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final da governação humana”. O erro de Fukuyama foi duplo: não reconheceu a complexidade do tema ao construir uma opinião que não a respeita e, mais concretamente, acreditou que a supremacia do neoliberalismo no final do século XX criaria necessariamente o ambiente ideal para o florescimento da democracia. A expansão universal do neoliberalismo levaria, segundo ele, à progressiva democratização do mundo. A verdade dos factos aponta em sentido contrário.
A democracia, literalmente “o governo do povo”, é uma forma superior de governação por envolver a participação e corresponsabilização a nível individual na defesa dos interesses colectivos. Pressupõe uma qualidade essencial que consiste na confiança recíproca entre os eleitores e os políticos, especialmente os que são eleitos. A democracia assumiu formas muito diversas ao longo da história e recentemente propagou-se através do mundo de forma descontínua, numa série de avanços e recuos. Huntington em 1991 identificou três “vagas longas” de democratização nos séculos XIX e XX. Na primeira vaga formaram-se 29 democracias, mas com o surgimento dos regimes totalitários na Europa o número de democracias diminuiu para 12 em 1942. A segunda vaga teve início no fim da Segunda Guerra Mundial e atingiu um máximo de 36 democracias em 1962. Depois houve um decréscimo que baixou o número para 30 mas em 1974 surgiu uma terceira vaga mais poderosa com a revolução dos Cravos em Portugal, seguida da Grécia e Espanha. Depois a nova onda estendeu-se a vários países da América do Sul e Central, do Sueste da Ásia, da Europa de Leste após 1989, e finalmente da África Subsaariana, aumentando o número total de democracias no ano 2000 para 120, de acordo com os critérios de classificação da Freedom House.
No século XXI assiste-se a uma nova regressão que tem sido quantificada através de várias metodologias desenvolvidas para classificar a qualidade de uma democracia. O “índice de democracia” construído pelo Economist classifica os regimes políticos em quatro categorias: democracias completas (full); democracias falhadas; regimes híbridos e regimes autoritários. De acordo com este índice o declínio da democracia teve início em 2008 e acentuou-se com a crise financeira e económica de 2008-2009. Num estudo recente, Foa e Mounk, publicado no Journal of Democracy em 2016, à pergunta se considerava essencial viver numa democracia 72% dos respondentes nos EUA da geração anterior à Segunda Guerra Mundial atribuíram o valor máximo de dez, enquanto na geração do milénio apenas 30% atribuíram esse valor. Na Europa, a opinião é semelhante embora a diferença entre as duas gerações seja menos acentuada. O estudo também revela que em média o interesse pela política tem decrescido nas gerações mais novas, embora isso não signifique menor militância política por parte de alguns dos mais jovens.
Há essencialmente três tipos de causas para a nova “recessão da democracia” que se manifestam com valores e incidências diferentes em cada país afetado. No primeiro tipo a crise financeira e económica de 2008-2009, originária dos EUA, assume uma grande importância. A crise resultou principalmente de um neoliberalismo descontrolado e provocou uma recessão à escala global que ainda está a ter efeitos negativos em muitos países dado que a recuperação tem sido muito lenta. A crise revelou fragilidades políticas, financeiras e económicas nas democracias dos países com economias avançadas do Ocidente. O resgate dos bancos e de outras instituições financeiras feito pelos governos com o dinheiro dos contribuintes, enquanto a elite que os controla continuou a aumentar os seus privilégios e riqueza, decresceu a confiança dos eleitores na democracia. Na União Europeia a crise de 2008-2009 evidenciou de forma dramática as fragilidades intrínsecas do sistema de moeda única. Nos países com economias avançadas começa a reconhecer-se que grande parte do poder está a concentrar-se em elites económicas e financeiras que defendem os seus interesses e não os interesses da maioria dos eleitores, embora influenciem por vezes de forma decisiva uma classe política frequentemente corrupta. A consequente diminuição do poder dos governos provoca a desvalorização da democracia que no limite se poderia tornar um ritual praticamente irrelevante. As desigualdades de riqueza continuam a aumentar através do mundo. Na maioria dos países com economias avançadas o poder económico da classe média está em recessão ou estagnado. Grande parte do eleitorado desses países considera-se esquecido e abandonado pelos governos.
O segundo tipo de causas localiza-se fora do conjunto de países com economias avançadas. A principal tem a ver com a China, que embora não seja uma democracia tornou-se um exemplo de sucesso mundial devido ao “milagre do crescimento económico”. O sucesso encoraja o Partido Comunista da China a defender o seu modelo de governação conhecido por Modelo Chinês nos países menos desenvolvidos. Pretende ser uma meritocracia baseada no Confucionismo na qual a liderança política é renovada em cada década e há um grande esforço em recrutar os novos quadros para os lugares cimeiros com base em critérios de mérito, talento, experiência e motivação. Porém, tem a desvantagem de controlar a opinião pública, limitar a liberdade de expressão, reprimir e emprisionar dissidentes e exercer a censura das publicações e intervenções na internet. Para além do milagre do crescimento económico iniciado na década de 1980, o Governo da China conseguiu reformar o Estado e dotá-lo com um quadro legislativo e instituições funcionais num tempo relativamente curto comparado com o que seria provavelmente necessário em democracia. A grande maioria dos chineses está confortável com o seu sistema político, principalmente porque assegurou um crescimento económico robusto e consequentemente a melhoria da sua qualidade de vida e bem-estar. De acordo com um estudo do Pew Research Center de 2013, realizado em vários países, a pergunta “Quão satisfeito está com o governo do seu país?” teve o maior número de respostas positivas na China com o valor de 83%. Na Rússia as respostas positivas foram 37%, enquanto nas democracias da Alemanha, EUA, Grã-Bretanha e França os satisfeitos totalizaram 57%, 31%, 26% e 19%, respetivamente.
Os países ocidentais, especialmente os EUA, tendem a ser muito críticos sobre as circunstâncias, os custos e o futuro do milagre do crescimento económico chinês mas o facto geopolítico importante é que repôs a China no lugar que tinha perdido no concerto das nações. Foi um processo único, que custou enormes sacrifícios às populações, por exemplo, ao provocar a migração para as cidades de cerca de 277 milhões de agricultores rurais, a maior migração da história humana. O impacto ambiental negativo do milagre do crescimento económico na China foi tremendo. Mas os chineses estão na sua maior parte orgulhosos com a transição notável que fizeram e que não se deve à democracia. Não teria sido possível cumprir um processo de tal envergadura e alcance sem alguma empatia e entendimento entre a população e as elites governativas. O modelo de governação chinês, também designado por Beijing Consensus, por contraponto ao Washington Consensus, caído em desuso, começa a influenciar vários países na África, Médio Oriente e Sueste Asiático. Kenneth Lieberthal, professor emérito da Universidade de Michigan, e Wang Jisi, Diretor da Escola de Estudos Internacionais da Universidade de Beijing e um dos ideólogos mais importantes da ascensão do poder da China, consideram que “muitos países em desenvolvimento que introduziram os valores e os sistemas políticos ocidentais estão a experimentar a desordem e o caos”.
O terceiro tipo de causas é mais insidioso e profundo. Resulta da crescente complexidade e insustentabilidade do atual paradigma global de desenvolvimento. Desde o Iluminismo que a humanidade navega impelida pelo vento fiel do progresso económico, científico e tecnológico. Foram séculos de grande sucesso que criaram condições de vida incomparavelmente melhores do que aquelas que tínhamos antes da Revolução Industrial para uma grande parte da humanidade. Os progressos científicos e tecnológicos deram-nos bem-estar, saúde, maior esperança de vida, mobilidade e capacidade de consumo verdadeiramente notáveis. Quem é que se convence que esse progresso não pode continuar indefinidamente para os que já o usufruem e que não se pode generalizar a toda a humanidade? Se foi possível chegar até aqui é certamente possível continuar sem qualquer limite mesmo que sejamos 9000 milhões, 10.000 milhões ou mais neste planeta da abundância.
Em lugar de dizer apenas “Let´s make America great again” por que não dizer “Let´s make the world great again”, ou ainda, todos em uníssono, “Let’s make each of our countries great again”. Este programa iria acabar com a fome e a pobreza no mundo sem que isso prejudicasse minimamente o crescimento económico dos países e a continuação do aumento da riqueza dos que já a possuem; acabar com a terrível poluição atmosférica na China, na Índia e em outras regiões do mundo; acabar com a poluição da água, dos solos e dos oceanos; combater as alterações climáticas mas continuar a prospetar, explorar e consumir combustíveis fósseis de modo a não prejudicar essa indústria; terminar com a perda de biodiversidade sem comprometer a expansão da agricultura e das áreas urbanas e da implantação de novas povoações; acabar com a estagnação ou recessão económica das classes médias nas economias avançadas garantindo o crescimento económico robusto em todos os países do mundo; garantir o acesso a fontes de energia baratas; fomentar a quarta revolução industrial mas evitar a robotização dos empregos; gerir de forma sustentável os recursos naturais mas garantir a extensão do consumismo a todo o mundo; diminuir as profundas desigualdades de riqueza mas manter as elites económicas e financeiras dominantes; evitar que haja refugiados que vêm de África para a Europa, especialmente do Sahel onde as secas, a pobreza e a fome progridem; evitar que haja refugiados que vêm do Médio Oriente para a Europa; acabar com o ódio entre Israel e os países árabes; continuar a globalizar a economia mundial mas sem os inconvenientes de uma competição considerada excessiva, entre muitos outros desideratos certamente possíveis de realizar. Este seria o programa de um “super Donald Trump” capaz de conquistar os votos de uma parte considerável da população mundial.
Não é possível! Mas se algum líder providencial mais convincente, carismático e iluminado disser que é possível, muitos acreditariam nele. O líder seria eleito, mas a democracia acabaria por ser classificada como falhada e poderia degenerar no autoritarismo. Os limites da democracia atingem-se quando a maioria dos eleitores não tem a perceção da complexidade dos desafios, dos condicionalismos e dos perigos inerentes à situação atual e futura, tanto do seu país como do mundo em que está inserido. Se após uma análise criteriosa, fundamentada e coerente dos possíveis cenários futuros continuarmos a exigir do futuro aquilo que ele não nos pode dar, caminhamos para o autoritarismo. No Ocidente começámos a correr esse risco no século XXI e se não o combatermos o futuro será cada vez mais incerto e perigoso. Se o regime político não se fundamentar na inquestionável defesa dos direitos humanos, na justiça, na solidariedade intra e inter geracional, na verdade dos factos, na sua análise desapaixonada e racional e no conhecimento científico a democracia torna-se inviável.
Viena, 2 de fevereiro de 2017