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"Ir a salto" e voltar: o contrabando no tempo da ditadura

Lucília Carneiro, antiga contrabandista
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Lucília Carneiro, antiga contrabandista

É noite escura e Lucília prepara-se para percorrer os doze quilómetros de rota montanhosa que une Tourém a Randín, já do outro lado da fronteira. Às costas, levará vinte quilos de café, na cabeça temores vários: o breu, o terreno clivoso, os lobos da montanha e os carabineros são os principais inimigos dos contrabandistas. Não enfrentaria tudo isso sozinha, jamais o faria sozinha. Há mais de 20 quilos de café para transportar até Espanha e por isso terá o Fernando como companheiro de travessia, transportando um "fardo" de 60 quilos – aquela que é medida de uma carga masculina. Hoje está frio, mas não neva. Sob chuva e frio, tudo é possível, mas não sob neve e gelo. A polícia portuguesa fará vista grossa, está tudo combinado, mas os carabineiros não irão facilitar; se Lucília e Fernando forem apanhados, os bens serão confiscados e não ganharão um tostão. O mesmo risco correm os espanhóis que atravessam a fronteira em direcção a Tourém, invariavelmente na posse de bacalhau – o principal bem de contrabando no sentido Espanha-Portugal. Ir e voltar pode levar toda a noite e amanhã é dia de trabalho no campo. Este é um esforço que fazem a troco de bom dinheiro. É um crime, é certo, mas não é um pecado. Além de toda a gente o fazer, em Tourém, até São Lourenço – o santo padroeiro do contrabandista – ajuda. Junto à rota que irão percorrer, lá estará, na capela, para abençoar a travessia. A agricultura é um trabalho duro e pouco rentável; sem o contrabando, a vida seria muito mais difícil. Era assim nos anos 60, em Trás-os-Montes. O contrabando era normal, praticado por todos, e tinha um aval comprometido das próprias autoridades. Portugal estava sob a ditadura de Salazar e as fronteiras estavam encerradas. "Saltavam" emigrantes e mercadorias, nesse período, e qualquer "salto" era ilegal, envolvia perigo. "Memória Clandestina" é um conjunto de imagens fotografadas por Hugo Santos, que recupera a memória do contrabando transmontano. Hoje, todos aqueles que "passavam" mercadorias para Espanha têm mais de 70 anos. Alguns têm mesmo muito mais de 80. Consideram que apesar da abertura das fronteiras ter sido benéfica, todas as pessoas de Tourém ficaram mais pobres. A região mantém-se fiel à agricultura e os rendimentos dos seus habitantes fiéis à legalidade. O contrabando existe ainda nas memórias dos mais velhos, mas o seu rasto perdeu-se. Mantêm-se os postos fronteiriços – abandonados, vandalizados –, os marcos de fronteira, a capela de São Lourenço e algumas das rotas – que servem, hoje em dia, outros propósitos.

Casa da Guarda fiscal, na fronteira, junto a Tourém
Estrada de acesso à fronteira, utilizado como caminho de contrabando, incluído na Rota do Contrabando
Marco de fronteira junto a Tourém
Campos de cultivo e aldeia de Tourém
Quotidiano da população, ligado à agricultura
Quotidiano da população, ligado à agricultura
Capela de São Lourenço, a própria capela é fronteira e era um local de contrabando
Domingos Lopes, antigo passador
Antiga ponte sobre o rio Salas, caminho de contrabando, atualmente submersa
Bento Barroso Grilo, antigo contrabandista
Caminho de contrabando, incluído na Rota do Contrabando
Albufeira da barragem do rio Salas
Fronteira Portuguesa