Admirável Língua Nova (Parte II)
Nunca ocorreu a nenhuma das luminárias do Acordo Ortográfico que não se encontram dois falantes de português em 261 milhões que pronunciem exactamente do mesmo modo todos os vocábulos que conheçam?
Com o Acordo, se ler que “Cristiano Ronaldo tem pé de atleta”, poderá tratar-se de um elogio ao talento do futebolista ou de uma micose superficial na pele dos pés do herói nacional, provocada por fungos. Se não adoptar o Acordo, a micose é grafada com hífenes. É essa a lógica da língua portuguesa. (Lógica que o Acordo mutila) [ver texto anterior, Admirável Língua Nova, Parte I] Quando queremos ler meramente a soma dos seus constituintes, naturalmente não hifenizamos.
Repare o leitor nas seguintes construções frásicas: “O robô tem um braço de ferro e outro de metal” e “As confederações patronais entraram num braço-de-ferro com os sindicatos”. O hífen desfaz o valor literal e confere outro sentido. Pense-se no cavalo. Um rabo de cavalo não é um “rabo-de-cavalo”, tal como um cavalo de batalha não é um “cavalo-de-batalha” (várias acepções). Pense-se no camelo. O asco que seria engolir baba de camelo e o prazer suave e demorado (para alguns) que é a baba-de-camelo.
Peço ao leitor que me acompanhe no penoso exercício de lermos conjuntamente alguns passos do Acordo. No passeio que daremos, leitor, se a língua para si é um assunto importante, sugiro-lhe que esteja imbuído do espírito da pergunta que Dinis Machado (Reduto Quase Final) fazia em qualquer situação, incluindo funerais: “Qual é o lado cómico disto?”
Com a Base XV, Ponto 6, adeus, hífenes, nas “locuções de qualquer tipo”. Nelas, atente bem, caro leitor, “não se emprega em geral o hífen, salvo nas exceções já consagradas pelo uso (como é o caso de água-de-colónia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-roupa)”. Mas como se determinam, como se identificam as “exceções já consagradas pelo uso”?, perguntará o leitor, como perguntam tantos professores de Português, cientes de que não alcançam a resposta nem a forma de ensinar o inexplicável aos alunos. Os acordistas guardam veladamente o segredo desde 1990.
Há certamente uma lógica escondida que o leitor não capta: “pé-de-cabra” perde os hífenes, mas “pé-de-meia” não; “cor-de-rosa” é com hífenes, mas “cor de laranja” sem; “fim-de-semana” passa a escrever-se “fim de semana”, como todas as fontes explicativas do Acordo sentenciam. É evidente, leitor, que “fim de semana” é – já o era em 1990, caramba!, que desatento que o leitor andava – uma locução que pertence ao grupo do “em geral” e não ao grupo das “exceções já consagradas pelo uso”, ao contrário das inequívocas “arco-da-velha” ou “água-de-colónia”, por exemplo, que pertencem – está-se mesmo a ver porquê! – ao grupo das “já consagradas pelo uso”. Talvez, quem sabe?, leitor, tudo resida naquele “já” (de 1990!). Ou isso ou o Acordo é uma grande comédia do absurdo.
Será que os dicionários captam as subtilezas do Acordo? O Acordo decreta, como já vimos, que a locução “arco-da-velha” mantém os hífenes. Como serão outras locuções com “arco” no início? Mais do que isso: como serão as locuções “arco-da-qualquer-coisa-que-não-velha”? Consultando “arco-da-chuva” e “arco-da-aliança” (sinónimas de arco-íris) nos dicionários, ficaremos a saber? No Houaiss, lemos com hífenes. Nos dicionários da Porto Editora e no Portal da Língua Portuguesa, sem hífenes. Qual será a interpretação genuinamente acordista?!
Mas há mais! Pasme-se: fontes que seguem o Acordo, sinopses do dito, dicionários com o Acordo há que nem as próprias excepções escarrapachadas com hífenes no Acordo levaram a sério! Sim!, até isso encontramos! O Portal da Língua Portuguesa e a Infopédia (Porto Editora) acolhem, por exemplo, “água de Colónia [com maiúscula, sim, é o que acontece aos nomes próprios quando caem os hífenes]”.
Sucede que para se perceber esta ilogicidade, leitor novato, é precisa uma elevação de espírito, uma flexibilidade mental, uma liberdade de voo intelectual só ao alcance dos mais acordistas.
Vejamos agora o Ponto 1 da Base XV. Lemos o seguinte: “Obs.: Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, pontapé, paraquedas, paraquedista, etc.” Sobre este parágrafo do Acordo que, num português de lei, começa com uma abreviatura e termina com outra, impõem-se algumas observações (perdão, “Obs.”) e perguntas.
Primeiro aspecto: “girassol”, “madressilva” e “pontapé” já se escreviam desta forma, algo que o Acordo elude. Segundo: como se consegue atingir esse estado de graça do intelecto que permite discernir “Certos compostos” em que se perdeu “a noção de composição” e neles identificar “mandachuva” e “paraquedas”? Terceiro: quem tem o medidor da “certa medida” e qual é exactamente essa medida? Quarto: quantos cabem nessa imensidão do “etc.” e como entender o “etc.”, quando, sobre todas essas trapalhadas, o que está escrito antes dele nem sequer permite vislumbrar o espírito da lei?
Alguém concebe um código civil, penal, laboral, fiscal, um código deontológico até, uma mera ementa no restaurante que tenha “etc.”? Talvez não, mas serve certamente para um Acordo que, por engenharia verbal, fixa a ortografia para 261 milhões.
Peguemos no nosso Código da Estrada.
Artigo 99.º
Lugares em que podem transitar
1 – Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas.
Os redactores (“redatores”, aliás) do Acordo teriam escrito de outro modo:
1 – Os peões devem transitar naquilo em que, em certa medida, não se perdeu a ideia de serem passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas, etc., salvo nas exceções já consagradas pelo uso.
Voltemos ao texto do Acordo, estimado leitor que ainda não perdeu a paciência. Na Base IV, Ponto I, Alínea c), lemos:
“c) Conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: aspecto e aspeto, cacto e cato, caracteres e carateres, dicção e dição; facto e fato, sector e setor, ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receção;”
Passando ao lado da beleza e da transparência da prosa, fica a pergunta: onde mora a pronúncia culta? (Há diferentes respostas dos acordistas.) E nesse sítio delimitável ou nesse território ficcional em que ela mora, pronunciarão os autóctones todos da mesma forma os mesmíssimos vocábulos? Mesmo considerando apenas os que são verdadeiramente cultos nessa área circunscrita, pronunciarão todos eles as mesmas palavras da mesma forma? Se nem duas pessoas da mesma idade nascidas e educadas na mesma localidade têm idêntica pronúncia, não será um bocadinho difícil?! Juro que fiz o exercício com os mais cultos das áreas mais nobres e não encontro unanimidade (em certas palavras, nem sequer consenso) – reparo até que a mesma pessoa oscila na pronúncia da consoante muda no singular e no plural da mesma palavra. Nunca ocorreu a nenhuma das luminárias do Acordo que não se encontram dois falantes de português em 261 milhões que pronunciem exactamente do mesmo modo todos os vocábulos que conheçam?
Observe agora o leitor como se escreve uma lista de medicamentos. Repare na total falta de ambiguidade. Chega a ser irritante. Na Lista de Medicamentos do Infarmed, podemos ler:
Fabrazyme
DCI da Substância Activa:
Agalsidase beta
Via de administração:
Via intravenosa
Dosagem:
35 mg.
Veja agora como teria sido redigido tal item com o espírito acordista:
DCI da Substância Activa:
Agalsidase beta
Via de administração:
A da medicina culta, quer geral, quer restritamente
Dosagem:
A da medicina culta, quer geral, quer restritamente.
O mais conhecido consultório linguístico em linha de Portugal (ferramenta muito valiosa, que muito estimo) adoptou o Acordo e nele podemos encontrar pérolas como a seguinte. Um consulente diz que na sua “comunidade linguística” se pronuncia o pê em determinado vocábulo. O consultor, negando o que anteriormente escrevera, decreta, então, que se uma pessoa de uma determinada “comunidade linguística” diz que se se pronuncia a consoante na sua terra, a grafia, afinal, passa a ser dupla! E se qualquer habitante de qualquer localidade do mundo que fale português disser acerca de qualquer outra palavra: “Aqui, pronunciamos”, “Aqui, não pronunciamos” – dupla grafia para todos ou ir indagar, um por um, os indígenas do território da “pronúncia culta”?! E se não estiverem todos de acordo – vai-se pela média ou pela dupla grafia para todos abarcar e ninguém se queixar? E como se faz essa estatística? – executando um exaustivo interrogatório, tocando a todas as campainhas e exigindo “O meu amigo tem de dizer como pronuncia todas estas palavrinhas, demorará apenas uma semana, oito horas por dia”? E como se delimita onde habita (ou será que paira até às áreas fronteiriças) a “pronúncia culta”? É em função da História da localidade?, da dimensão de habitantes?, do poder económico?, do número de livros que compram?, da quantidade de bibliotecas que possuem?
Quem defendeu inicialmente o Acordo e não mudou de posição – muitos mudaram e muitos, muitos, muitos se calaram – está hoje num labirinto pior do que o do Minotauro. Leitor, veja as seguintes respostas (que subscrevo integralmente) do imprescindível Ciberdúvidas a determinadas perguntas que desvelam a monstruosidade do Acordo: “Resulta de uma falta de clareza do texto do novo AO, como noutros assuntos, nos quais temos de usar o bom senso ou socorrer-nos da tradição vernácula”; “não me agrada nada seguir o critério fonético em concepção, passando [a] escrever conceção (o p cai em Portugal), pois a sua pronúncia pode vir a confundir-se com a da palavra concessão” [e em receção/recessão?]; “o uso do hífen não foi inventado pelos vernaculistas do passado para nos complicarem a vida, mas para darem riqueza à língua”, “surpreende o número de palavras nas quais os brasileiros continuarão a seguir o critério etimológico, porque coincide com a sua pronúncia, enquanto para Portugal o fonético faz cair a consoante por ser muda. Ou seja, paradoxalmente, Portugal teve de dispensar consoantes das sequências, porque já não se usavam no Brasil (ex.: ato, corretor com ambiguidades, Egito, estupefação com incoerências), e agora os brasileiros ficam com muitas consoantes que os portugueses perderam?...”
O que acabou de ler, por paradoxal que lhe possa parecer, caro leitor… foi escrito… por… quem… defende (e escreve com) o Acordo. A “lógica” é a seguinte: o quarto é feio e exíguo, a cozinha é bafienta e precisa de muitas obras, a sala é um horror, as demais divisões são ainda piores, o sítio em que está é deplorável… mas a casa é boa.
António Guerreiro usou o adjectivo certo – declarou o crítico ser o Acordo “inaplicável”. Explicou (debate Onde pára e para onde vai a Língua Portuguesa?) que quando falava com os revisores do Expresso, estes tinham uma interpretação do mesmo, mas quando ia ao andar de baixo para falar com os da Visão, os revisores desta revista diziam que os do andar de cima estavam errados, entrando em rivalidade com os de cima.
Ouvi um comunista contar uma piada sobre trotskistas que tinham criado um partido com três elementos, partido que rapidamente se extinguiu por haver quatro tendências. Não sei por que estranha ligação me lembrei disto a propósito do Acordo…
(Continua.)