Morreu Maria Cabral, "rosto e símbolo" do Cinema Novo
“Era uma mulher lindíssima e talentosíssima”, disse Vasco Pulido Valente em 2007 sobre a ex-mulher. Foi "a Monica Vitti" de José Fonseca e Costa; outros viram-na como a Anna Karina do cinema português.
Maria Cabral, “rosto e símbolo do Novo Cinema Português” e reconhecida logo pelo seu papel de estreia no cinema como a mulher jovem que deixa um casamento no Portugal da década de 1970 em O Cerco, de António da Cunha Telles, morreu este domingo, dia 15, na localidade de Lannemezan nos Altos Pirenéus franceses, aos 75 anos.
Na página de Facebook da Academia Portuguesa de Cinema, a instituição lembra a actriz, que se distinguiu também no teatro, e manifesta “grande tristeza” pela sua morte, elencando parte do seu currículo cinematográfico. Foi então com O Cerco, em 1970, que Maria Cabral encetou uma carreira em que se destacaria, como disse ao PÚBLICO Manuel Mozos em 2011, entre os raros actores com “um instinto especial para o cinema” em Portugal – “Há alguns casos, como os de Isabel Ruth ou Maria Cabral, que são muito fortes no ecrã", disse a propósito da morte de Pedro Hestnes, então alvo de um ciclo integral na Cinemateca Portuguesa.
António da Cunha Telles recorda agora o seu encontro com a actriz, nesse final da década de 1960. “Ela apareceu-me um dia no pequeno estúdio de publicidade que eu tinha em Lisboa. Percebi logo que seria uma boa actriz, e escrevi O Cerco já a pensar nela”, diz o realizador ao PÚBLICO.
O também produtor – recorde-se que Cunha Telles produziu Os Verdes Anos [Paulo Rocha, 1962], filme-farol do Cinema Novo português – lembra igualmente que, na altura, o desaconselharam a escolher Maria Cabral para aquela que seria a sua primeira longa-metragem como realizador, “dizendo-me que lhe faltava a experiência do teatro, que era onde então se iam buscar os actores para o cinema”. “Mas era mesmo isso que eu pretendia: alguém que estivesse livre e completamente disponível, sem os vícios da representação teatral, e a Maria Cabral deu-me isso”, realça o realizador. E acrescenta ter tido com ela “uma relação muito conseguida”. “Ela foi magnífica, entregava-se completamente à personagem do filme, havia um entendimento perfeito”, diz Cunha Telles, notando as circunstâncias especiais em que decorreu a rodagem de O Cerco: uma equipa pequena de meia dúzia de pessoas, vinte mil metros de película já fora de prazo, que tinham custado vinte contos, e uma velha máquina Arri, de reportagem… “Foi uma verdadeira aventura”.
O Cerco “é um filme que inventa uma coisa raríssima no Cinema Português que é um rosto, que é o rosto da Maria Cabral, que é o rosto do desencanto do marcelismo”, atesta o crítico de cinema do Expresso Jorge Leitão Ramos em Chamo-me António da Cunha Telles (2010), de Álvaro Romão. “Fiz a música baseado na cara da Maria Cabral”, admite no mesmo documentário o compositor António Victorino de Almeida, sobre o filme que teve um eco significativo na sociedade portuguesa e nas bilheteiras – tanto as nacionais quanto, por exemplo, as francesas.
De resto – e ao contrário do que acontecera com Os Verdes Anos, que não teve grande eco no momento da estreia –, Cunha Telles assinala a importância que teve para O Cerco a boa recepção do filme em França, onde foi elogiado pelo crítico do Le Monde, Louis Marcorelles. Foi depois seleccionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes, onde a imprensa “descobriu o rosto da Maria Cabral”, diz o realizador, exemplificando com o facto de a revista de moda Elle ter feito uma capa com ela, o mesmo tendo acontecido com outros títulos da imprensa, especializada e generalista. Tornar-se-ia assim também o rosto do movimento vanguardista do cinema português que renovou a produção cinematográfica durante o Estado Novo e se afirmou desde a década de 1960, em paralelo com a Nouvelle Vague francesa e herdeiro das influências do neo-realismo italiano.
“Depois, em Portugal, o filme teve três meses de lotações esgotadas no estúdio Império, em Lisboa”, além de ter conquistado vários prémios.
Monica Vitti ou Anna Karina
Seguir-se-ia a O Cerco nova primeira longa-metragem de outro nome marcante do Cinema Novo, O Recado (1972), de José Fonseca e Costa. Maria Cabral é aqui uma pequeno-burguesa, retrato de uma geração desencantada com a continuação do fascismo, num filme que aborda de frente a acção da PIDE.
Depois da estreia de O Recado, Urbano Tavares Rodrigues escreveu numa crónica, dirigindo-se ao realizador: “É a tua Monica Vitti, não a percas!” Houve também quem visse nela a “Anna Karina do cinema português”.
De qualquer modo, O Cerco e O Recado “são dois filmes que bastam para Maria Cabral marcar o re-arranque do cinema português na viragem da década 60-70”, escreve Jorge Leitão Ramos no seu Dicionário do Cinema Português, 1962-1988.
A seguir, e ao longo da toda a década de 1970, a actriz vai para Paris com uma bolsa da Gulbenkian, para aprofundar a sua carreira como actriz. Acaba por aí ficar ao longo de toda a década, dedicando-se de corpo e alma ao teatro, primeiro, como membro do grupo Laila (de Serge Ducher), depois, trabalhando com Miguel Yeco – com quem, de resto, regressa a Portugal, em 1981, para apresentar no AR.CO, em Lisboa, a peça Pessoas e Ecos – Primeiro Prelúdio.
É também na primeira metade da década de 1980 que regressa ao cinema português, e de novo pela mão de Cunha Telles, para interpretar Vidas (1984). “Já foi uma situação completamente diferente; eu tinha ajudado a inventá-la para o cinema, mas aquilo já não era o filme dela, e o cinema deixou de ser também o caminho dela”, diz o realizador, que, no entanto, reafirma a importância da actriz nesse movimento que ajudou a dar novo crédito ao cinema português, libertando-o “do cinzentismo triste das comédias de boulevard” que marcavam a produção da época pré-Cinema Novo.
Em Portugal – e depois de em França ter entrado no filme de Alain Tanner, No Man's Land (1985) –, Maria Cabral conclui a sua carreira cinematográfica com Um Adeus Português (1986), de João Botelho, uma reflexão dolorosa sobre as feridas da Guerra Colonial, onde contracena com Isabel de Castro, João Perry e Ruy Furtado.
Lamentando o desaparecimento de mais uma figura do cinema e da cultura, João Botelho, em declaração ao PÚBLICO, nota que "Maria Cabral não é uma figura qualquer". "Devo-lhe aquele olhar irresistível, aquela loucura que lhe permitia fazer as coisas por simples intuição", acrescenta o realizador de Um Adeus Português. E lembra tê-la ido buscar aos Pirinéus, onde ela se encontrava a viver. "Era tão maravilhosa, destravada, tanto rezava ao sol como à lua", diz Botelho, recordando que ela chegou ao plateau de Um Adeus Português completamente diferente da imagem que tinha deixado em Portugal. "Mas continuava a trazer a luz na cara, que não havia igual. Era um vislumbre, com aquela beleza bem portuguesa: mãos compridas, coração grande, uma delicadeza enorme..."
"Um Adeus Português foi um filme que me deu muito trabalho, mas foi maravilhoso ter podido trabalhar com ela. Eu adorava-a", repete João Botelho.
Ao longo de uma carreira que se tornaria curta, Maria Cabral experimentou também a televisão, onde, de resto, se estreara na década de 1950, na apresentação de programas infantis, e à qual voltaria em 1983, na série de variedades da RTP O Foguete, liderada por António Sala, Carlos Paião e Luís Arriaga. O ensaísta e tradutor Frederico Lourenço partilhou esta segunda-feira na sua página no Facebook que considera Maria Cabral como uma personalidade "(como diria Oscar Wilde) 'larger than life and twice as natural'", com quem conviveu na sua infância, lembrando também os dotes de pianista da actriz.
No cinema, a sua estreia não-oficial, por se ter tratado de uma curta-metragem “que nunca chegou a ser terminada”, fez-se com João César Monteiro, disse Maria Cabral numa entrevista à RTP, aquando da estreia de O Cerco.
A “luminosa” Maria da Conceição Gomes Cabral, como a descreveu no PÚBLICO em 2007 o crítico cultural e poeta Pedro Mexia, nasceu em Lisboa e estudou em Luanda, Angola, até terminar o liceu. Esteve três anos no curso de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, chegando a trabalhar como modelo e a participar em filmes publicitários, como contou à RTP. Teve uma filha, Patrícia Cabral, com Vasco Pulido Valente, com quem foi casada. “Era uma mulher lindíssima e talentosíssima”, disse Pulido Valente ao Expresso em 2007.
Notícia actualizada em 10 de Fevereiro, com a correcção do local onde ocorreu a morte da actriz, Lannemezan e não Paris, no dia 15 de Janeiro.