Por que foi tão pouca gente ao funeral de Soares?
É muito triste esta incapacidade de nos sentirmos em dívida para com os melhores de nós. E de lhes prestarmos o justo tributo enquanto tal.
Não faltou nada ao funeral de Mário Soares. Honras de Estado. Três dias de luto nacional. Fotografias espalhadas pela capital. Altos dignitários. O rei de Espanha. Uma cerimónia impecavelmente organizada. Momentos íntimos e comoventes. A voz de Maria Barroso a declamar “Os dois sonetos de amor da hora triste”: “Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro/ Do que tu – não deixes de fechar-me os olhos/ Meu Amor.” O belíssimo discurso de Isabel Soares. As televisões e as rádios em directo. Jornais e revistas desdobrando-se em homenagens. Não faltou nada. Excepto gente.
A desproporção entre a cerimónia oficial e a cobertura mediática, por um lado, e o número de pessoas na rua, por outro, foi tão gritante que Ferro Rodrigues veio justificar a falta de povo com o facto de ser “dia de trabalho” e de muitos estarem ali “em pensamento”. Mas quando os campeões europeus chegaram a Portugal a 11 de Julho também era dia de trabalho, e nem por isso o país deixou de sair à rua. “Hoje é feriado!”, proclamou Éder na Alameda. Não era. Mas parecia. Com Soares não se passou nada disso, e o argumento de que só o futebol faz mover multidões não colhe: o funeral de Cunhal, em 2005, foi acompanhado por um banho de gente, e as fotos da Avenida Morais Soares apinhada de bandeiras vermelhas impressionam. Como justificar este abismo na adesão popular?
Claro: existe a extraordinária capacidade de mobilização do PCP, e o facto de a devoção comunista estar mais próxima de um fenómeno religioso do que político. Mas existe um outro problema, mais complexo, e, a meu ver, mais grave: a incapacidade da nossa democracia em produzir os seus próprios heróis. Talvez como reacção ao excesso de ganga nacionalista do Estado Novo, e ao facto de a guerra colonial ter sido assimilada como desonra (e com boas razões para isso), nós olhamos para o século XX português e não encontramos vestígio de heróis políticos ou militares. Em parte, porque eles não existem. Em parte – Salgueiro Maia será o caso mais evidente – porque não fomos capazes de os construir e promover.
A monarquia acabou sem glória. A Primeira República foi um caos. A participação na Primeira Guerra foi patética. O Estado Novo foi uma ditadura de 40 anos. E a guerra colonial foi injusta. Qual é, afinal, o último grande herói político ou militar português? Talvez Mouzinho de Albuquerque, e mesmo esse matou-se a tiro na Estrada das Laranjeiras. Os meus filhos estão condenados a viverem com os heróis dos outros. Eles sabem quem foi Lincoln, Churchill e Roosevelt, em breve saberão quem foi De Gaulle ou Luther King, mas nenhum deles é capaz de nomear um herói português com menos de 400 anos.
Por muito que nos desmereçamos enquanto povo, não é possível que em meio milénio não tenhamos produzido figuras admiráveis e merecedoras da nossa devoção. Simplesmente, não fomos capazes de as inserir na narrativa do novo regime, seja através de livros, filmes, séries, monumentos, celebrações ou museus. Há um meio termo entre a propaganda patriótica à António Ferro e o nada – mas nós ainda não o encontrámos. Talvez seja o trauma pela perda do império. Talvez seja a falta de sucesso económico em democracia. Talvez seja a eterna desconfiança face ao Estado e a ausência de uma verdadeira sociedade civil. Não sei o que é. Mas sei que é muito triste esta incapacidade de nos sentirmos em dívida para com os melhores de nós. E de lhes prestarmos o justo tributo enquanto tal.