Em defesa de Augusto Santos Silva
Aquilo que Augusto Santos Silva disse, nas condições em que o disse, constitui, de facto, uma conversa privada entre políticos amigos.
Devo dizer que gosto tanto de Augusto Santos Silva como de alcachofras, e eu não suporto alcachofras. Acho, aliás, lastimável que ele tenha sido convidado para ministro dos Negócios Estrangeiros e número dois do Governo depois de ter andado seis anos a desempenhar o papel de caceteiro oral de José Sócrates, sempre disponível para malhar na direita, na esquerda, no centro, e em todos aqueles que o patrão mandasse. A sua pele camaleónica, que o fez ser (quase sempre) um ministro capanga e trauliteiro quando o chefe se chamou José Sócrates, e o faz ser (quase sempre) um ministro comedido e institucional porque o chefe se chama António Costa, é ainda mais uma razão para não gostar dele. O Homem-Borracha nunca foi uma das minhas personagens favoritas, e quando quero apreciar espinhas retrácteis vou ao Cirque du Soleil.
No entanto, neste caso específico do psicodrama da feira do gado, sinto-me obrigado a defender Santos Silva, ainda que sob o efeito de uma litrosa de sais de fruto. Vamos cá ver. É evidente que comparar a concertação social a uma feira do gado é cavernícola, boçal e grosseiro, o que apenas demonstra que a fachada polida do ministro Santos Silva é uma daquelas pinturas mal-amanhadas que saltam à primeira raspadela. Ele foi inconveniente. Foi malcriado. E a história que inventou ao fim do décimo quarto depoimento à comunicação social, de que na sua feira do gado metafórica os parceiros não eram os bovinos – nem pensar! –, mas sim os negociadores de gado vacum imbuídos da honradez típica das grandes feiras rurais, é um daqueles assomos de criatividade a que os ingleses chamam justamente bullshit, para nos mantermos no campo agropecuário.
Dito isto, não há forma de desconsiderar este facto essencial: aquilo que Augusto Santos Silva disse, nas condições em que o disse, constitui, de facto, uma conversa privada entre políticos amigos, que estavam de costas para a câmara, e que só foi captada porque hoje em dia existem uns microfones bestiais que apanham o bater de asas de uma borboleta a 30 metros. Tenho, aliás, dúvidas de que a TVI devesse ter passado aquelas imagens. O que se diz a um microfone que não se sabe estar aberto, ou o que é apanhado por uma câmara que está a filmar sem que se saiba, pode perfeitamente ter uso jornalístico se o seu conteúdo for de manifesto interesse público. Da mesma forma, uma gafe pode também ser reveladora, ou simplesmente divertida, e merecer divulgação.
Só que a frase de Augusto Santos Silva não foi nada disso. Não foi uma gafe dita em público. E o seu interesse público é duvidoso, porque Santos Silva não tutela a área da concertação social e não esteve envolvido nas negociações. Se, por hipótese, fosse Vieira da Silva, ou o próprio António Costa, a utilizarem a metáfora da feira do gado, o caso seria bem mais grave. O primeiro estaria a gozar sem pudor com as pessoas com quem tinha acabado de assinar um acordo, o que seria politicamente insustentável. O segundo é primeiro-ministro e, como o próprio já afirmou, nem no café se pode esquecer da sua condição. Tendo sido outro o protagonista, ainda que ministro, eu diria que tudo não passou de uma piada foleira que uma pessoa educada jamais faria. Só que Santos Silva não está obrigado a ser educado. Está apenas obrigado a não fazer piadas deste calibre em visitas de Estado e reuniões bilaterais. O que tinha a fazer era pedir desculpas públicas. Foi o que fez. Caso encerrado.