As florestas fictícias em que vivemos

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

Foto
PÚBLICO

Será romancear demasiado imaginar que no período que medeia entre o Natal e o Ano Novo, os organismos, vencidos pelos excessos de consumo de que o gastronómico não será o menor, e amodorrados por necessidades regenerativas, estarão porventura receptivos a uma contemplação que no resto do ano o cronómetro suspende, impede e mata? Por simplificação, vamos crer que sim, se algum do nosso crer não foi suspenso, impedido e morto pelas desilusões do ano que mais logo vamos despedir (com justa causa). Com a ajuda dos entes queridos, caso já tenham regressado a suas casas, ponhamos mais um cavaco na salamandra (não, não se trata de um ataque traiçoeiro ao batráquio), ou, na falta de uma qualquer caranguejola de aquecimento, ponhamos o gorro e o cachecol a estrear e alguma paciência a esgotar e apliquemo-la a ler isto:

“É raro um pinhal ser apenas um aglomerado de árvores. Mesmo na Transilvânia, com a densa obscuridade que projectam os cedros no espaço vegetal, não se trata apenas de um aglomerado de árvores; há um acordo entre o sentimento humano e aquela formação botânica de raízes e de ramos. As glandes parecem acabadas de suspender, como se contivessem um pequeno presente de Natal ou de aniversário – um menino de ouro, com bracinhos curvos e palpitantes.

À beira-mar, na corda atlântica, um pinhal é sempre um acontecimento. Não só o Pinhal Real, com as clareiras que parecem manchas sangrentas, coloridas pela agulha vermelha que a chuva carregou mais, mas os pinhais da Tocha e de Lavos são lugares de certo modo inacessíveis. Quero dizer que os habita uma lenda, às vezes só o pressentimento de uma lenda; e que, mesmo os pinhais concorridos pelo turista de fim-de-semana, ou os que estão povoados de estranhos chalés e moradias funcionais, de arquitectos e de médicos bem sucedidos, contêm um espírito errante de que é preciso desconfiar. A sua solidão, às vezes tão flagrante, é fictícia. Percorre-os um sopro morno e perverso, algo como uma turba de instáveis forças, traiçoeiras e, no melhor dos casos, caprichosas. Talvez por isso, os pinhais são escolhidos como propícios a sanatórios. Na Gelfa e em Valadares construíram-se em tempos casa de saúde que corresponderam, é certo, a uma época naturista mas que, a contar com os inconvenientes do clima marítimo, não seriam aconselháveis nos caso mais inofensivos de qualquer enfermidade. E, no entanto, parece grassar a crença em todo o mundo de que o pinhal é benéfico; não as montanhas ou o mar, mas a proximidade da sombra tutelar em que os druidas decerto estabeleceram as suas conferências” (Agustina Bessa Luís, “Os Meninos de Ouro”, Grande Prémio do Romance e Novela Associação Portuguesa de Escritores 1983, Guimarães Editores, Lisboa, 1987).

Era aqui que eu queria chegar, mas faltava-me a perna para estas passadas. Tal como a floresta, também esta passagem da famosa escritora pode ser benéfica a quem não a conheça. Que seja tão útil como foi para mim aquele excerto do “Clarissa”, do brasileiro Erico Veríssimo, lido numa selecta literária nos anos 70. Esse encantamento, nos verdes anos em que quase tudo pega, medrou lentamente, até me guiar aos alfarrabistas e me fazer olhar além do “Olhai os Lírios do Campo”.

E se nem todos poderemos ser donos de árvores maiores do que as que se derem num vaso de varanda, todos poderemos ser donos de pedaços de florestas onde entrámos em tempos ou onde continuamos a entrar, desde que tenhamos visto delas, pelo menos, um ponto suficientemente mágico para nos fazer dar o sorriso dos entendidos quando lemos a descrição interpretada da Agustina.

As pessoas e as árvores são feitas de carbono, sabe-se, mas será isso que nos identifica com elas? Assistam ao corte de um pedaço de madeira e respirem o serrim (ou serradura); sobre a superfície aplainada, lixada, polida, boleada, nua, antes do verniz, passem o dedo apalpador e digam-me a verdade: é só uma coisa inerte? Não ressumam dali recordações queridas? Não há como que electricidades de relíquias santas? Não há vestígios de vida que continuam até ao papel dos livros e que passam para nós em cada toque?

Já tive uma lindíssima nogueira-americana, frondosa de folha miúda e graciosa, que sempre esteve naquele sítio, no seu lugar no terreno de família, até àquela noite de tempestade do final dos anos 90 em que partiu pelas raízes, caindo sobre o muro e interrompendo a via pública. No fragor com que partiu estava contido o conjunto de memórias que se perdeu. Ainda estou de luto. Resta-me a pseudotsuga, mais alta do que a casa, que uns vêem como ameaça e eu vejo como o que resta de uma era, de uma identidade.

Mas também tive uma floresta que não era minha e que era a floresta dos meus livros e dos meus sonhos. De um lado e do outro dos cinco quilómetros de estrada de montanha, de curvas e contracurvas, que iam da Sobreira a Parada de Todeia, logo a seguir a Castromil, quando não havia casas e as árvores eram excepções exóticas à norma do pinheiro-bravo. Mais acima, um pouco acima do que é hoje uma entrada da auto-estrada, havia um muro baixo coberto de musgo limitando um terreno e, numa curva que hoje já não existe, a combinação de fetos e carquejas e queirós e árvores e ângulos de sol que por entre eles se coavam deixou-me ver algumas vezes a floresta dos livros de aventuras que é muito difícil de encontrar, a floresta onde existem palavras que não há em mais nenhum lugar, que o vento não leva, porque são só dali. Dali e dos livros dos que as viram e sabem retratá-las. Para que os outros, os que nunca as viram, possam aquecer-se nelas, e crer, voltar a crer no fictício que há de mais real. Bom Ano.

Correio premente

De A. J. Letra Afonso, de Malanje, Angola, recebi: “É com os olhos marejados e a boca cheia de bolo-rei que lhe escrevo, com a urgência dos gratos, para lhe dizer o quê? Que em boa hora utilizou o espaço público de que V. Ex.ª dispõe para promover esse nobre instrumento que o meu paizinho tocava de noite e de dia, que na nossa terra se chama bombardino, com licença da senhora que no último número dessa gazeta que se chama P3 fez a apologia de uma outra designação. Não posso, não quero, não mo consentem as doces memórias de infância chamar nomes ao bombardino... Quando passar por aqui, pare, que se arranja na hora um usse ou um pouco de carne seca para premiar a viagem.” Agradeço muito o convite. Teria muito prazer em conhecer Malanje, mas talvez depois de descansar um pouco a vesícula e de receber um adiantamento de dez anos pelos honorários presuntivos destas crónicas.

De S. Bontempo, de Valongo, recebi: “Tenho um vizinho que toca trompa. Sei que é trompa porque ainda me lembro da música do genérico da série ‘Robin dos Bosques’ da minha infância. Bem, o que interessa é que o meu vizinho está sempre a ensaiar e como mora na encosta da serra, a música vem por ali abaixo, do lado do motel, entrando pelas janelas de quem tem casa no vale. Devo dizer que apesar de gostar bastante de música, já achei mais piada à trompa do meu vizinho, porque o que é de mais é moléstia. Não têm aí ninguém que possa telefonar aos serviços camarários para lhe desligar a corneta? Sim, porque, afinal, aquilo não passa de uma corneta, mas assim mais para o redondo. Como os jornalistas e os políticos são da mesma panelinha, um de vocês dê um toque ao vereador da Música, porque há marés que aqui não se pára com o barulho. Obrigado.” Caro Leitor, lamento informá-lo de que não dispomos de elementos de ligação com as autarquias. Talvez não lhe ocorra, nesta época de grandes tecnologias, que eu escrevo sozinho em casa, de gorro e cachecol, por causa do frio, num Power Mac G5. Bom Ano Novo.

Sugerir correcção
Comentar