Anonymous, o mais famoso grupo de desconhecidos
As Muitas Faces dos Anonymous lê-se como um romance de espionagem, um thriller às vezes dramático, às vezes inspirador, com momentos hilariantes pelo meio.
Numa altura em que muito se tem falado do papel dos media, das notícias falsas, da pós-verdade, do papel das redes sociais na difusão de informação, As Muitas Faces dos Anonymous é um livro fascinante. Não porque aborde estes temas em particular, mas porque fala de um grupo tão complexo que os media raramente o conseguem explicar, o que os torna alvos fáceis das tais notícias falsas e pós-verdade. Mas deixemos estes palavrões de lado e falemos do livro de Gabriella Coleman.
Quem são os Anonymous? Coleman, antropóloga cultural, precisou de um livro inteiro, e anos de investigação e vivência no meio de alguns Anonymous, para o conseguir explicar. E mesmo assim haverá sempre pontas soltas, porque uma das bases dos Anonymous é precisamente a sua rejeição da organização. Não quer dizer que os seus membros não se organizem em grupos para levar a cabo certas acções, que às vezes atraem centenas de participantes, mas enquanto grupo, colectivo ou o que lhe quiserem chamar, os Anonymous não têm líderes, não têm canais de comunicação oficiais, não têm manifestos, não têm orientação.
Anonymous é mais uma designação que surgiu por acidente — e sob a qual se protegem activistas, hackers, piratas informáticos, trolls da Internet e afins — do que um grupo propriamente dito. Quem tiver ouvido falar por alto dos Anonymous, por causa de uma ou outra acção em particular, terá quase de certeza uma ideia errada: porque falar dos Anonymous enquanto grupo que fez isto ou aquilo é em si mesmo uma mentira. Para cada acção levada a cabo por um grupo de Anonymous (por exemplo, a participação activa de membros do grupo na Primavera Árabe), há outro grupo de Anonymous que é contra essa acção, que acha que se deviam concentrar noutros assuntos políticos ou que acha que o grupo não devia sequer envolver-se em assuntos políticos.
O livro de Gabriella Coleman é um guia perfeito para entender a história deste não-grupo. As suas origens estão precisamente no trolling e no infame portal da Internet 4chan. O trolling tinha um fim muito simples: o lulz (uma derivação de lol), isto é, rir e fazer rir à custa dos outros. Revelações de informações embaraçosas sobre pessoas, empresas e marcas eram o alimento perfeito para os trolls do 4chan. Um dia, um dos alvos dessas brincadeiras foi a Igreja da Cientologia. Só que o que parecia ser só mais um alvo do trolling destes internautas rebeldes, tomou proporções maiores: alguém tomou a iniciativa de fazer um vídeo, em tom ameaçador, que declarava guerra à Igreja da Cientologia. O vídeo, que pretendia ser só mais uma piada, gerou um debate acesso entre os incipientes Anonymous, e muitos decidiram que era por ali o caminho: atacar a Cientologia.
Este, quiçá, momento inaugural dos Anonymous, em 2008, é o espelho do seu modus operandi desde então: alguém lança uma ideia e, se houver aderentes, segue-se a acção. LNo caso da Igreja da Cientologia, houve ataques informáticos aos sites da Igreja e uma série de partidas como encomendar centenas de pizzas para as igrejas, partidas telefónicas para as linhas gratuitas, etc. Tudo isto culminou com manifestações em muitas cidades dos Estados Unidos contra a Igreja da Cientologia que foi bastante abalada pelos ataques.
Gabriella Coleman passou anos no seio dos Anonymous para escrever o livro que a Relógio d’Água agora publicou em Portugal (o original é de 2014). Grande parte desta investigação foi feita, como não podia deixar de ser, na Internet, mais concretamente em salas de chat do IRC (umas mais secretas que outras). Pelo caminho, conheceu pessoalmente vários Anonymous, participou em conferências, e teve um sem-fim de conversas, privadas e em grupo, que lhe permitiram escrever esta história do grupo. Tudo isto feito com o consentimento dos envolvidos, claro; enquanto antropóloga, Coleman explicou-lhes sempre ao que ia.
Há dois factores muito curiosos nos Anonymous, que são perfeitamente explicados pela autora. O primeiro é a ambiguidade do grupo. Longe de ser um grupo político, ou sequer organizado, os Anonymous têm no seu currículo iniciativas humanitárias que é difícil não louvar, mas também acções muito controversas e pouco ortodoxas, que espelham as origens ambíguas do grupo, com membros que só querem divertir-se e outros que são mais politizados. O segundo é a mecânica do mesmo: a insistência no anonimato, que os faz rejeitar qualquer membro que tente chamar para si as atenções; a forma como as iniciativas parecem surgir do nada; e as guerras e disputas e desconfianças internas. Este último factor, aliás, intensificou-se desde que vários hackers do grupo foram presos, sendo que alguns passaram para o outro lado da equação, nomeadamente para o FBI, chegando a trabalhar como infiltrados do governo, denunciando ex-companheiros.
A história é tão rica, tão cheia de nuances sem paralelo, que qualquer pessoa que tenha interesse nos Anonymous ou no ciberactivismo em geral tem de ler este livro. A informação a que Gabriella Coleman teve acesso é exclusiva: foram muito poucos os jornalistas que chegaram tão perto dos Anonymous e certamente nenhum passou tanto tempo a estudar o grupo. A única nota menos positiva vai para a tradução, que em alguns momentos soa demasiado forçada e faz escolhas duvidosas como a tradução de geek como cromo. De resto, a citação da Wired que aparece na contracapa — “Parece um romance de John Le Carré” — é certeira: As Muitas Faces dos Anonymous lê-se como um romance de espionagem, um thriller às vezes dramático, às vezes inspirador, com momentos hilariantes pelo meio.