A caminho de uma nova Guerra Fria entre os EUA e a China?
A estratégia de Trump pode desencadear uma nova Guerra-Fria. Não será uma repetição do passado mas um novo tipo susceptível de danificar seriamente a economia mundial.
1. Uma das consequências mais inesperadas da vitória de Donald Trump pode ser o desencadear de uma nova Guerra Fria. Quando o mundo esperava a vitória de Hillary Clinton nas eleições norte-americanas — e uma atitude mais assertiva face à Rússia e à sua intervenção na guerra da Síria e ingerência no Leste da Ucrânia —, a surpreendente vitória de Trump alterou esse cenário. A possibilidade que está a emergir de uma nova Guerra Fria não envolve a Rússia, mas a China, e será de um novo tipo. A confrontação que decorreu entre 1946-1947 e 1989-1991 tinha como actores político-militares os EUA e a antiga União Soviética. Ambos tinham numerosos aliados a alimentavam guerras por procuração em vários pontos do mundo. Mas essa foi a Guerra Fria do passado. O novo conflito tem agora como actores os EUA (a superpotência que venceu a Guerra-Fria do século XX) e a China (a superpotência emergente que ameaça a primazia global dos EUA). As declarações de Trump fortemente críticas da China durante a campanha eleitoral — sobretudo em questões comerciais e cambiais —, foram reiteradas nesta fase de transição para as funções presidenciais, que assumirá em inícios de 2017. A isto acresceu uma polémica sobre um assunto extremamente sensível para a República Popular da China: a questão de Taiwan (Formosa no nome tradicional em português).
2. O comportamento de Trump em matéria de política internacional é bastante errático e desfasado das abordagens mais usuais da diplomacia norte-americana. Entre outras consequências, isso torna-o particularmente imprevisível. Muito provavelmente vai ser assim ao longo do seu mandato, ou pelo menos, durante os primeiros tempos. Apesar de tudo, parece existir uma estratégia face às duas grandes potências rivais: Rússia e China. Fundamentalmente parece assentar numa cooperação pragmática com a Rússia, reconhecendo-lhe, explícita ou implicitamente, esferas de influência como na Síria ou na Ucrânia. A recente indigitação de Rex Tillerson para Secretário de Estado — um milionário ligado à indústria de petróleo (ExxonMobil) e com boas relações com a Rússia (em 2013 foi condecorado por Vladimir Putin com a medalha de Ordem da Amizade) —, reforça a ideia de existir essa estratégia. Quanto à China, Trump parece querer confrontá-la naquilo que põe em causa o interesse nacional norte-americano, especialmente em questões comerciais e cambiais. Voluntária ou involuntariamente essa estratégia, bem mais assertiva e conflitual do que a de Barack Obama e John Kerry, pode desencadear uma nova Guerra-Fria. Não será uma repetição do passado mas um novo tipo susceptível de danificar seriamente a economia mundial. A China, ao contrário da União Soviética, é uma grande potência capitalista autoritária, com presença económica global e interligada à economia norte-americana.
3. A cooperação pragmática com a Rússia e a confrontação económico-comercial-política com a China, são peças de uma relação triangular que parece estar a ser configurada para os próximos tempos. Se isto ocorrer mesmo assim, poderá ser uma variante da estratégia de Nixon-Kissinger no início dos anos 1970, a qual também surpreendeu o mundo. Até essa altura, os EUA e a generalidade dos seus aliados não reconheciam a República Popular da China — e o governo comunista de Pequim —, como legítimos representantes de uma única China. A situação perdurava desde 1949, com a chegada ao poder de Mao Tsé-Tung (ou Mao Zedong na transliteração em língua inglesa), e a fuga de Chiang Kai-shek e dos seus partidários para Taiwan (Formosa). Nesse período, o governo de Taipé era considerado o verdadeiro representante legal da China (República da China), incluindo no Conselho de Segurança da Nações Unidas. A inversão estratégico-diplomática norte-americana levou ao reconhecimento da República Popular da China e do governo de Pequim em detrimento de Taiwan. Só pode ser entendida no contexto da Guerra-Fria. O objectivo era dividir o campo comunista e afastar, ainda mais, a China da esfera da União Soviética. A guerra do Vietname e a procura de uma saída política para esta entrou igualmente nesse cálculo. Com a China a competir com os EUA pela supremacia global, Trump parece querer usar similar estratégia, agora favorecendo a aproximação à Rússia contra a China.
4. Caso se confirme esta alteração da política externa norte-americana as consequências serão enormes e também difíceis de antecipar em toda a sua amplitude. Pela positiva, a aproximação entre os EUA e a Rússia poderá facilitar uma solução negociada para a guerra da Síria. Mas o conflito é complexo e há múltiplos actores com interesses dificilmente conciliáveis. Um exemplo: Trump parece querer pôr em causa o acordo nuclear feito com o Irão por Obama e Kerry. Mas o Irão é outro actor fundamental no conflito da Síria e aliado de Bashar al-Assad e da Rússia no mesmo. Como se podem conciliar estas duas linhas em rota de colisão é uma questão em aberto. Há ainda o caso de dois aliados tradicionais dos EUA com interesse directo no conflito — Turquia e Arábia Saudita —, nada interessados em que a Síria fique na esfera de influência da Rússia e do Irão. Mas, conforme já referido, o cenário mais complexo joga-se na relação entre os EUA e a China. A estratégia de Trump parece ser ameaçar com a questão de Taiwan e a política de uma única China, para obter concessões ao interesse nacional dos EUA, especialmente em matéria comercial e cambial. Todavia, para o governo de Pequim, isso toca também no seu interesse nacional fundamental e na sua soberania. Não é negociável. Vai o conflito escalar para uma nova Guerra Fria? Se esse cenário ocorrer os efeitos geopolíticos também se farão sentir, por exemplo, e de uma maneira bastante óbvia, na Coreia e no Japão. Basta lembrar que a China é uma peça incontornável na pressão política internacional sobre a Coreia do Norte e nas sanções económicas contra o seu programa nuclear.
5. Por último, uma nota sobre o novo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, que vai entrar em funções num ambiente internacional particularmente complexo e tenso. As expectativas quanto àquilo que poderá fazer estão demasiado elevadas. Impõe-se baixá-las. Apesar dos seus méritos — e são muitos para este exigentíssimo cargo internacional —, o facto de não ter sido a primeira escolha de nenhuma das grandes potências facilitou-lhe a vida, até agora. Permitiu, por exemplo, que o seu perfil — muito ligado a questões humanitárias e dos direitos humanos —, mais facilmente pudesse ser aceite pela Rússia e pela China. Mas muitos dos elogios à sua escolha são presentes envenenados. Resolver o conflito da Síria, encontrar soluções para crise dos refugiados, actuar na protecção dos direitos humanos, implementar os acordos ambientais à escala mundial, etc. Tudo isto se espera de Guterres. Tudo isto tem uma forte dimensão política que o ultrapassa. Actuações ambiciosas e uma liderança forte, colidem, inevitavelmente, com o interesse de alguma(s) das grandes potências, membros do Conselho de Segurança e com poder de veto. Parafraseando o antigo Secretário-Geral, Boutros Boutros-Ghali, que exerceu o cargo nos anos 1990, as grandes potências não querem um general (só de vez em quando), mas um secretário — na altura referia-se aos EUA, que se opuseram à sua reeleição. Mas pode acontecer ainda pior do que isso: a paralisação da ONU por uma Guerra Fria entre os EUA e China.