A trapalhada na Caixa nunca existiu

O Governo teve a sorte ou o mérito de gerir a notícia da demissão de António Domingues e pôde passar um dia inteirinho a fazer festas na barriga.

O Governo teve a sorte ou o mérito de gerir a divulgação da notícia da demissão de António Domingues da Caixa e pôde passar um dia inteirinho, o sábado passado, a fazer festas na barriga.

Nesse dia, António Costa e os seus ministros celebraram um ano de governação e sem o espectro da Caixa a ensombrar a festa foi-lhes mais fácil distribuir loas e angariar cumprimentos. Porque, no balanço de um ano, conseguiram passar por cima da maior e mais evidente nódoa do seu mandato. Uma nódoa indelével que não pode ser remetida para a pesada herança do Governo anterior, não pode ser assacada ao capricho dos mercados, nem às bizarrias da Comissão Europeia, nem aos ditames do BCE, nem à anemia da procura externa nem aos compromissos celebrados com os eleitores. A história da Caixa é uma história de irremediável culpa própria, uma ferida auto-infligida. Num tempo normal, o Governo estaria a apurar responsabilidades e justificar erros. Mas, como estes dias são demasiado normais, tudo parece condenado ao eclipse. O Governo está a especializar-se em anestesiologia.

O incidente da Caixa não seria nunca o canto-do-cisne do Governo, mas obrigá-lo-ia a assumir responsabilidades. Porque o caso foi tão grave que espalhou estilhaços. Ficaram patentes as divergências entre o PS e o PCP, de um lado, e do Bloco, no outro, na votação de uma alteração ao Orçamento do Estado que tornava irreversível a entrega das declarações de rendimentos dos administradores da Caixa. No próprio PS foram-se ouvindo desabafos incómodos sobre a forma como o Ministério das Finanças geriu e comunicou o processo. Os custos para a credibilidade da Caixa são imensos. Os danos na reputação do país enormes. Mas o que, em circunstâncias normais, determinaria um sentimento de gravidade e urgência está condenado a acabar em pizza, como dizem os brasileiros. Para lá das perguntas desgarradas do PSD e do CDS ou da declaração assertiva do Bloco sobre a incompatibilidade de Domingues para gerir um banco público, o que impera é um silêncio conformado. Uma sondagem da Universidade Católica para o JN/DN e RTP indicava até que a crise na Caixa era culpa de António Domingues.

Vale a pela tentar perceber por que razão há tanta condescendência com o Governo. Ou, por outras palavras, saber se este clima geral de satisfação que se vive nas ruas, que se expressa nas sondagens que favorecem o PS, que leva o primeiro-ministro a dizer que vivemos num “país normal”, só tem coisas boas ou se, pelo contrário, é um perigo. Em boa medida, esse clima resulta de um acto de contrição. Ninguém acreditava que o Governo chegasse aonde chegou e, principalmente, que o tivesse feito na boa forma que exibe por estes dias. Poucos suporiam que António Costa fosse capaz de governar com o essencial do seu programa e de usar o apoio do Bloco e do PCP depurado dos seus extremismos. Costa é apreciado porque foi capaz de mudar o discurso político, de introduzir no quotidiano uma sensação de apaziguamento e até de esperança, de distribuir dinheiro que não há através de uma gestão oportunista e inteligente da política fiscal, de cumprir a meta do défice. Foi ainda capaz de usar com ponderação os trunfos políticos de ministros como Augusto Santos Silva ou Adalberto Campos Fernandes para dar do Governo sinais de determinação, ideias e futuro.

Os adversários mais radicais do Governo dizem que tudo isto se faz com propaganda, varrendo os problemas para debaixo do tapete ou criando uma ilusão de santidade que em breve será destruída com a aparição do Diabo. É verdade. Como sempre foi em todos os Governos até aqui. Convém, por isso, recordar que a política é a arte do possível ou, na versão estilo Código da Estrada do primeiro-ministro, “governar é como conduzir; se há mais trânsito, vamos mais devagar”. Como a pista está cheia de problemas, o Governo ou pára, ou contorna-os, ou adia-os com a candura de António Costa bem temperada pelo espírito ecuménico do Presidente-rei. Ambos lideram uma sessão de espiritualidade zen após quatro anos de ajustamento severo.  

Costa e os seus pares no Governo ou na Assembleia geram confiança e expectativa e isso é bom (porque um país distendido é um país melhor), mas é também mau (porque um país anestesiado é um país pior). O processo da Caixa é um repositório cruel de falhas de palavra, abuso no poder para fazer leis a pedido, incompetência em perceber que as promessas feitas chocavam com leis existentes, mentira e hipocrisia, tropelias que exigem do primeiro-ministro um súbito intervalo na euforia congratulatória. Não havendo uma demissão, uma ligeira assunção de erros próprios, um brevíssimo reconhecimento de que não foi António Domingues quem faltou à palavra nem rasgou compromissos, fica-se com a suspeita de que este estado de graça colectivo tem como principal sustento a dissimulação e a irresponsabilidade. Se viver num país normal é bom, aceitar que histórias como a da Caixa se enquadrem nesse espírito de normalidade é terrível.

2 – Na coluna da semana passada escreveu-se que o Diabo se esconde nos detalhes e a prova estava no próprio texto. O seu ângulo partia do pressuposto de que João Galamba, deputado do PS, tinha desvalorizado o contributo da exportação de aviões F-16 para a Roménia no surpreendente crescimento do PIB no terceiro trimestre apenas para poder defender a bondade da tese do crescimento baseado na procura interna. Ora, o pressuposto estava errado. Inapelavelmente errado. Porque o que João Galamba tinha dito é que o contributo da exportação teve um impacto neutro nas contas do PIB. Ou, nas suas próprias palavras a propósito do artigo, que justificadamente considerava estar “todo ele assente num monumental engano”, a única coisa que “fica afectada pela venda dos F-16 é a composição do PIB, que acaba por revelar exportações de 162 milhões de euros mais elevadas e investimento de 162 milhões de euros mais baixo do que num cenário sem venda dos F-16”. Ou, por outras palavras, o que a venda dos aviões fez foi “empolar (contabilisticamente) a procura externa e reduzir (contabilisticamente) o investimento”.

Discutir e criticar opções políticas é um exercício útil. Errar na interpretação dos factos enunciados por terceiros, não. Mas, e aí entra o Diabo, foi isso que aconteceu. João Galamba não desvalorizou o contributo da exportação dos F-16 para defender ideias sobre a política económica; apenas a contextualizou de acordo com as normas contabilísticas do INE. Ou seja, o pressuposto da crítica é errado. E exige um pedido de desculpas a João Galamba e aos leitores desta coluna. O que, junto com a correcção, aqui se procura fazer.

 

 

 

 

 

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