São João de Deus, uma história por contar
Pedro Neves prossegue com Tarrafal, que esta terça-feira se estreia no Porto/Post/Doc, um dos percursos mais consistentes do cinema documental nacional.
É curioso reparar como as escolhas portuguesas para o concurso do terceiro Porto/Post/Doc circulam à volta da ideia de comunidade. É um tema central à própria ambição do festival, que quer reactivar e renovar uma comunidade de cinéfilos na Baixa do Porto; mas é também um tema comum às três longas nacionais, muito diferentes entre si, produzidas independentemente umas das outras e filmadas um pouco por todo o mundo. Essa ideia de comunidade é, na verdade, o traço que une Ama-San, de Cláudia Varejão (terça, dia 29, às 19h; sexta, dia 2, às 21h30), Eldorado XXI, de Salomé Lamas (quinta, dia 1, às 22h), e Tarrafal, de Pedro Neves (terça, dia 29, às 22h; sexta, dia 2, às 18h30; sempre no Rivoli): todas elas lançam olhares sobre comunidades ameaçadas ou precárias, cuja existência se deve à teimosia da resistência, da simples necessidade de sobreviver. É, por onde se quiser ver, uma óptima selecção.
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Dos três filmes, a única verdadeira “novidade” é também aquela que mais próxima está da própria geografia do festival e da cidade do Porto: na sua primeira longa, Pedro Neves vai à procura daquilo que sobreviveu à demolição do tristemente célebre bairro de São João de Deus, que ganhou a alcunha de Tarrafal, percorrendo com antigos moradores os baldios que sobraram do bairro.<_o3a_p>
Tarrafal inscreve-se, primeiro, no próprio mote do festival de activar a produção documental do Norte e de contar histórias específicas da região; inscreve-se, em seguida, na obra de um realizador cuja produção invejavelmente regular (é o terceiro ano que Neves mostra um filme novo no Porto/Post/Doc) tem mostrado um especial interesse pelas histórias que ficam por contar. No seu grande plano sobre um local urbano que desapareceu, Tarrafal rima com Hospedaria, que mostrou no Curtas Vila do Conde em 2014, e sofre um pouco pela sensação (também ela recorrente nos filmes do realizador) de que o material e a abordagem não conseguem sustentar por inteiro o tempo de duração, soçobrando aqui e ali numa redundância algo desnecessária. <_o3a_p>
Mas a câmara (muitas vezes “flutuante”) de Neves deixa que sejam os próprios “sobreviventes” a contar as suas histórias, a sublinhar as suas misérias e grandezas, a denunciar a “engenharia social”, mesmo que não premeditada, que esteve na origem da deterioração e eventual demolição do bairro. Como quando se fala do “bloco dos condenados”, onde eram realojados os “casos-problema” que haviam sido expulsos de outros bairros, ou do círculo vicioso em que os habitantes eram apanhados, estigmatizados simplesmente por morarem ali, impossibilitados de ter uma oportunidade para lhe escapar. <_o3a_p>
O bairro já não existe fisicamente, mas as sequelas, essas, sobreviveram-lhe. Ao dar rosto e voz às histórias de quem lá morou, Pedro Neves consegue a espaços reencontrar a força do seu filme mais urgente, Acima das Nossas Possibilidades (2014), e prossegue um dos percursos mais consistentes do cinema documental nacional.<_o3a_p>
Sobre as mergulhadoras japonesas que Cláudia Varejão filma delicada e sensivelmente em Ama-san já tivemos oportunidade de falar aquando da sua estreia no Doclisboa (onde venceu merecidamente a competição portuguesa). Sobre o mergulho em profundidade de Salomé Lamas na comunidade mineira de La Rinconada, nos Andes peruanos, debruçámo-nos na sua estreia, em Fevereiro passado, no Forum de Berlim; o filme tem no Porto/Post/Doc a sua estreia formal em território português, coincidindo com o lançamento (quinta, dia 1, às 18h) do livro Parafiction – Selected Works, monografia sobre os recentes trabalhos multi-disciplinares da realizadora e artista.<_o3a_p>