Os filmes que mais ninguém faz do Sensory Ethnography Lab
O Porto/Post/Doc aponta o holofote ao centro criativo da universidade de Harvard que abriu novas portas para o documentário. Mas quem o dirige não gosta dos holofotes.
Qualquer discussão do que é o documentário contemporâneo, ou dos seus percursos em direcção às experiências formais e narrativas dos “cinemas do real”, tem de passar pelo trabalho que o Sensory Ethnography Lab (SEL) tem levado a cabo ao longo da última década. Este laboratório ligado à Faculdade de Antropologia da Universidade de Harvard, dirigido pelo britânico Lucien Castaing-Taylor (n. 1966), tem levado a ideia de cinema documental e etnográfico a limites experimentais invulgares, através de filmes como People’s Park (2012, Cohn/Sniadecki), Manakamana (2012, Spray/Velez) ou Sweetgrass (2009, Barbash/Castaing-Taylor). São alguns dos objectos mais fascinantes do cinema de não-ficção do século XXI, outras formas de olhar para a realidade que tornam inevitável o interesse de um festival como o Porto/Post/Doc pela produção do centro.
O SEL é, então, alvo de foco na edição 2016 do certame portuense, inspirando o programa de debates sobre o “cinema sensorial” Forum do Real (a decorrer na sexta, no café-concerto do Rivoli), e exibindo três das longas produzidas no laboratório (Sweetgrass, Manakamana e Leviathan) e uma “carta branca” seleccionada por Castaing-Taylor e por Véréna Paravel (n. 1971), professora associada do centro, dedicada à cineasta checa Jana Sevcikova. No entanto, quando abordamos a importância do trabalho do laboratório no documentário recente, Castaing-Taylor e Paravel pensam, “honestamente”, que o SEL tem “tido mais atenção do que merece.” Chegam até a dizer que “seria provavelmente mais saudável que fechasse.”
As declarações chegam por e-mail, em pleno processo de montagem de Somniloques, o próximo trabalho da dupla cujo Leviathan, estreado em Locarno em 2012, se tornou no “cartão de visita” do laboratório (e ganhou inclusive o prémio de Melhor Filme no Indielisboa em 2013). A relutância em assumir o cargo de “porta-voz” de uma estrutura com tantas ideias quantas cabeças envolvidas é explicada assim por Paravel e Castaing-Taylor: “As pessoas parecem ter a impressão que o SEL é um grande centro de produção cultural – mas na verdade é minúsculo, mal financiado, não é um programa institucional. É só um espaço, com uma quantidade pequeníssima de equipamento, que tem sido usado por algumas pessoas para tentar fazer coisas (principalmente filmes e videos). Mas não é tão original ou produtivo como as pessoas de fora parecem por vezes supor – e também tem ajudado a criar uma boa quantidade de tralha.”
Não se trata apenas de “estar a fazer género”. Quando Castaing-Taylor acompanhou Leviathan ao Indie em 2013, já revelara em conversa com o PÚBLICO a sua reticência em falar da produção do SEL, explicando que os seus integrantes (tanto professores como alunos) não eram cineastas profissionais ou académicos convencionais. Apenas “gente que quer fazer qualquer coisa”, apostada em registar os traços “liminais”, intangíveis da realidade, sem se sentirem espartilhados pelas convenções tradicionais do registo documental: fazer “os filmes que mais ninguém faz”, como nos disse então Castaing-Taylor. Leviathan acompanhava uma campanha de pesca no Atlântico através dos registos de uma série de câmaras fixas instaladas num barco de New Bedford, filmados sem intervenção humana. People’s Park era um plano único de 75 minutos filmado em tempo real numa tarde de domingo num parque de Chengdu, na China. Manakamana alinha viagens em tempo real num teleférico montanhês no Nepal.
Alguns destes projectos, que se prolongaram para exposições ou instalações artísticas em ambientes museológicos, não foram forçosamente pensados para exibição comercial – Castaing-Taylor falava até da surpresa de ver um filme como Leviathan ser distribuído (como efectivamente foi). Trata-se, essencialmente, de usar as novas tecnologias para fazer um novo tipo de etnografia para os tempos modernos – capturar em âmbar momentos específicos de uma cultura, numa “amostragem” pluridisciplinar na confluência da arte, da etnografia, da antropologia e da historiografia.
Será isso que explica a escolha pelo SEL da checa Jana Sevcikova (n. 1953) para a carta branca que o Porto/Post/Doc lhes abriu? Afinal, os seus filmes, que investigam as vidas de comunidades étnicas da Europa de Leste perdidas nas vicissitudes geográficas da história do século XX, funcionam também nessa confluência pluridisciplinar. O entusiasmo de Paravel e Castaing-Taylor é palpável, mesmo por escrito: “Escolhemo-la porque achamos o trabalho dela sublimemente belo,” dizem. “É, certamente, formalmente muito diferente da maioria do nosso de muitas maneiras: ela usa entrevistas, intercala-as com planos de paisagens ou de actualidades. E também usa música. Mas o nosso trabalho também não é todo idêntico. E as suas afinidades e diferenças com o nosso trabalho não são para aqui chamadas, porque não estávamos a pensar nisso quando a escolhemos. Não sabemos se, ou como, ela é uma influência ou uma companheira de viagem; sabemos apenas que estamos completamente fascinados pelos seus filmes.”
O convite original da organização para esta carta branca abria-se a dois ou três cineastas europeus, mas através de um concurso de circunstâncias, os responsáveis do SEL optaram por se concentrar na documentarista checa, também porque “o trabalho dela é menos conhecido do que os outros nomes em que tínhamos pensado”. Sevcikova – que estará no Porto a acompanhar o festival - tem apenas sete filmes feitos desde 1981, muitos deles exigindo longuíssimos tempos de pesquisa e rodagem, e a dimensão inteiramente independente da sua produção tem-na tornado numa espécie de segredo bem guardado. “Os seus filmes são simultaneamente líricos e realistas de um modo que é exclusivamente dela,” prosseguem Paravel e Castaing-Taylor no e-mail. “Oscilam entre o transcendental e o terrestre, o sagrado e o profano, de um modo que quase não tem precedentes. Alguns dos momentos de Old Believers, rodado ao longo de cinco anos sobre emigrantes russos ortodoxos que fugiram à perseguição religiosa do século XVII e se instalaram no delta do Danúbio, são talvez o mais próximo que chegámos de ver o espiritual capturado em filme. São alucinatórios, e completamente transfigurativos.” Mesmo que Verena Paravel e Lucien Castaing-Taylor não se sintam confortáveis a dizê-lo, dizemo-lo nós: podiam estar a falar de uma produção do SEL. Filmes como mais ninguém faz.