As aventuras do Porto/Post/Doc pela pós-verdade do pós-documentário
O festival portuense acolhe um grupo de filmes que desafiam as lógicas convencionais entre a ficção e o "real".
No festival de “cinemas do real” que o Porto/Post/Doc é, qual é o papel da ficção? A julgar pela aposta da organização, bem no centro dos holofotes. Entre os 13 filmes a concurso estão três títulos que desafiam o espectador a escolher de que lado da linha divisória querem estar. Como quem diz (para parafrasear Hong Sang-soo) que “a ficção é o futuro do documentário”, mas também que “o documentário é o futuro da ficção”.
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Não se trata, mesmo que o pareça, de uma simples boutade. Bangkok Nites, do japonês Katsuya Tomita, Kékszákállú, do argentino Gastón Solnicki, e Mimosas, do francês naturalizado espanhol Oliver Laxe (Grande Prémio da Semana da Crítica de Cannes), convidam o espectador a aventuras pelos mundos liminais da experiência humana, num constante ziguezaguear pela raia entre a ficção e a não-ficção, o registo e a extrapolação. A mesma raia que os táxis efabulatórios de Mimosas exploram nas vias do Atlas entre o passado e o presente, entre o sonho e a realidade, entre a fé e a dúvida. Ou que os expatriados (nipónicos e não só) atravessam permanentemente nas noites de Banguecoque filmadas por Tomita, ou que as personagens em limbo de Kékszákállú cruzam da adolescência para a vida adulta, entre a Argentina, o Uruguai ou o Brasil. <_o3a_p>
São filmes instalados na terra de ninguém entre documentário e ficção, mas também em “interzonas” burroughsianas ou tarkovskianas onde as leis do mundo real deixam de se aplicar por inteiro, ao mesmo tempo que se ancoram numa geografia ou numa arquitectura específica. São filmes que falam aos nossos tempos de “pós-verdade” de um modo muito específico – “documentários emocionais” em que a geografia serve de “gatilho”; corpos estranhos, híbridos, mutantes que correspondem a novos modos de abordar os territórios da ficção. <_o3a_p>
Bangkok Nites (dia 28, às 21h30; dia 1, às 14h30), que chega ao Porto vindo do Lisbon & Estoril Film Festival, é certamente o mais “convencional” dos três, (des)construindo-se como um film noir desacelerado e melancólico sobre dois românticos apanhados no turbilhão de um submundo que os devora enquanto a vida vai correndo. A dimensão documental vem aqui do olhar naturalista sobre as noites de Banguecoque, reforçado pela dilatação paciente do tempo ao longo das suas três horas de duração. Em Kékszákállú (dia 28, às 14h30; dia 3, às 16h30), Gastón Solnicki, aqui em primeira incursão na ficção, introduz um lado de retrato quase entomológico nos seus tableaux gelados, arquitecturais, de jovens a entrarem na idade adulta, e a lidarem com tudo aquilo de que até então estavam protegidos. É um filme meticulosamente pensado, enquadrado, organizado, criando uma espécie de claustrofobia sufocante para as suas personagens, ao mesmo tempo que a câmara que ali está e vai ficando parece abrir-se ao acaso e ao imprevisto.
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Já Mimosas (dia 27, às 22h; dia 30, às 16h30) é feito de outro tecido. Inteiramente ambientado nos décors reais das montanhas marroquinas, o filme de Oliver Laxe alimenta-se da força das paisagens e da presença dos seus actores nessas paisagens para criar um estado de fluxo entre verdade e mentira, alucinação e facto, em que nunca sabemos de que lado está a realidade: nas viagens dos táxis pela desolação dos desertos, ou da pequena caravana desagregada que acompanha o funeral de um xeque? <_o3a_p>
Não há, contudo, como bater Under the Sun, de Vitaly Mansky (dia 27, às 21h30; dia 30, às 14h30), como denunciador último da ténue fronteira entre ficção e documentário. Este objecto que levanta todo o tipo de questões, éticas, teóricas e práticas, é verdadeiramente um documentário sobre a ficção. Mansky aceitou rodar um filme de propaganda para a Coreia da Norte sobre o quotidiano de uma família normal. Mas, ao deixar as “pontas” em muitos dos planos e ao revelar toda a estrutura de rodagem por trás, mostra toda a engrenagem propagandística e o controlo férreo dos responsáveis norte-coreanos sobre o produto, e torna o filme num documentário ambíguo e perturbante sobre uma realidade que, ela própria, não passa de uma ficção, uma mentira que sustenta toda uma sociedade. É o retrato perfeito da “pós-verdade” em que vivemos.