No centro é que está a virtude?
Portugal teve a sorte de contar com mais 1339 milionários. Mas como não há investimento, só podemos adivinhar de onde vem o dinheiro.
Uma sirene estridente ecoa pelo mundo: é o alerta sobre a rápida marcha do populismo. Os primeiros sinais foram a desastrada aventura referendária de Cameron, com o “Brexit”; logo depois, a vitória de Trump, em que ninguém queria acreditar, porque não parecia concebível. Em poucas semanas, a União Europeia descobriu-se sem destino e os Estados Unidos entregues a um milionário que se vangloria de não pagar impostos e é festejado por supremacistas bancos e antissemitas. Ficamos surpresos e, no entanto, sabemos que vivemos um tempo em que tudo o que é sólido se pode dissolver no ar. Preparemo-nos então para sustos e terramotos já ao virar da esquina: a curto prazo, a extrema-direita pode ganhar as eleições na Áustria; o plebiscito de Renzi, em Itália, pode virar-se contra ele e deitar abaixo a união monetária; a França pode reduzir-se a ser uma disputa entre uma direita radical e a extrema-direita; o Governo da Alemanha, que pouco mais reconhece do que o bastão e a finança, vai-se perdendo no labirinto da sua relutância europeia.
É então o populismo uma ameaça? A democracia vive as suas vésperas dos anos 30? Pode o centro, um dia apresentado como “centro vital” e condição da democracia, sobreviver à sua decrepitude e recompor o mundo? Deve a esquerda vergar-se à virtude do centro? É isso que quero discutir com as e os leitores do PÚBLICO.
As eleições norte-americanas
A esquerda norte-americana esperava muito pouco destas presidenciais. Com o afastamento de Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrático, ficou descartada qualquer hipótese de um candidato que mobilizasse jovens e transportasse a esperança de redução da desigualdade. Sobrou uma candidata cujo argumento fundamental era a sua vez na sucessão dinástica, contra um milionário que humilha trabalhadores, que promove o racismo, um fanfarrão misógino que incita ao ódio, um político irresponsável que mobiliza os negacionismos, desde os fundamentalistas que recusam Darwin em nome da lenda de Adão e Eva até aos especuladores fósseis que rejeitam as evidências científicas sobre as alterações do clima.
Ainda assim, Hillary Clinton teve quase dois milhões de votos a mais do que Donald Trump, como seria de esperar. Mas Trump ganhou mais estados e, com o sistema eleitoral norte-americano, será Presidente. Sobretudo, Trump ganhou os estados que tradicionalmente os republicanos ganham, mas ganhou ainda estados onde os democratas ganhavam desde 1992. São os estados conhecidos como “cintura do carvão” e, se olharmos para o que aconteceu aqui, compreendemos o que aconteceu nestas eleições: os trabalhadores brancos mais pobres votaram na política do medo, porque têm medo e foram eles que viraram as eleições, dando uma vantagem de 70-30 para Trump nesse grupo social. São as vítimas da globalização, são aqueles desempregados da paisagem de Flint, onde Michael Moore filmava a desolação da indústria perdida e onde agora se pagou o preço da incerteza.
Seria ocioso ver Trump como uma desconhecida força do mal. A esquerda conhece esta força como ninguém, pois combate-a há décadas. A xenofobia contra os imigrantes, o machismo e a homofobia, o discurso fanático e o fundamentalismo religioso, como o preconceito contra os direitos do trabalho ou dos pensionistas, não nasceram hoje, já votaram e até ganharam algumas vezes. Reconheçamos de novo que essas forças estão longe de ter desaparecido (alguém acreditava nisso? Com o desprezo do trabalho? Com a menorização da juventude? Com a violência quotidiana contra mulheres, negros, homossexuais?). Então, para perceber porque venceram desta vez, recordemos Bill Clinton em 1992: “It’s the economy, stupid.” Foi mais uma vez a economia que decidiu as eleições, porque foi nas suas falhas, nas suas promessas e nas suas mentiras que se alimentaram as desconfianças e os ódios que formaram a onda que Trump surfou. E é só na economia, portanto na vida das e dos de baixo, que se pode recompor uma corrente alternativa à trumpificação da política mundial.
Trumpizar a direita e o centro?
Perante a eleição de Trump, tem havido duas respostas que são tentações suicidas. A primeira é a normalização da figura e do seu programa, na ingénua convicção de que, eleito o Presidente, o poder acaba por trazer a razão, como se a Casa Branca inoculasse os seus ocupantes com doses de benevolência e sensatez. Ora, a normalização choca com a realidade de cada dia: Trump começou logo por celebrar com autocratas e chefes xenófobos, escolhendo o abraço da extrema--direita xenófoba britânica e francesa. Pode perguntar-se se não é pura ignorância, se não percebe que Teresa May, primeira-ministra britânica, lhe é muito mais confortável do que um Nigel Farage sem poder efetivo e perdido no seu labirinto. Mas o pior sinal, porque mais consequente, é a instalação nos cargos de confiança do submundo de rotundos reacionários, de herdeiros do KKK a partidários de guerras raciais. Trump é mesmo o que parece.
Esta primeira tentação, a da normalização, tem ainda uma variante curiosa. Trump vai fazer o correto mesmo que pelas razões erradas, dado que será um keynesiano promotor do crescimento com grandes investimentos públicos, justamente do que o mundo precisa como pão para a boca. Ora, o seu programa económico é de facto paradoxal, mas isso nem se estranha em alguém que tranquilamente diz tudo e o seu contrário. Mas acalmem-se os trumpólogos otimistas: nem a maioria republicana no Congresso facilita jogos deficitários, para além da ansiada redução de impostos para os milionários, nem as velhas soluções de construção de pontes resolvem a estagnação em que o mundo foi mergulhado pela pirataria financeira.
Trump é mesmo isso: um radical neoliberal que usa o protecionismo como instrumento imperialista, ao mesmo tempo que protege a liberalização e a circulação de capitais sem regulação com uma combinação feroz de autoritarismo, conservadorismo e fronteiras do ódio.
Uma nova Guerra Fria
A segunda tentação é a trumpização do próprio centro. Esta resposta defensiva recorre à palavra mágica: populismo. Em resumo, a desagregação política resultante da financeirização e da crise mundial seria apenas fruto de um cerco à democracia feito pelos “inimigos da globalização”, os famosos populistas. Portanto, a solução é continuar, mais do mesmo, correr em frente — ou seja, continuar a fazer exatamente o que tem garantido a fortuna e a sorte dos Trumps deste mundo.
É tarde de mais para que seja o centro a salvar-nos. O centro tornou-se neoliberal há muito e a social-democracia da Terceira Via é, mais do que sua companheira de circunstância, militante da mesma causa. Nas suas incursões guerreiras (lembra-se de Blair?) ou na sua promoção da finança como lei do mundo (o euro e o Tratado Orçamental), aceitaram deixar agonizar os regimes democráticos, que agora são impotentes para tomar decisões. Numa terra em que quem tem o poder real não tem legitimidade, a consequência, está bem de ver, é que a política se desmorona e por isso o trumpismo é a forma da nova direita, é o tempo dos aventureiros.
Invocar o perigo “populista” para defender a última virtude do centro é por isso um argumento de desespero a evitar a todo o custo. Historicamente, o centro cedeu sempre ao populismo: a República de Weimar entregou o poder a Hitler sem laivo de resistência. Mais, ao tentar exorcizar agora o perigo que alimentou, o centro repete o erro de usar o “populismo” para criar uma nova Guerra Fria. Foi assim na primeira Guerra Fria, cujo argumento irmanava fascismo e comunismo como um “populismo” insano. Esta amálgama grotesca entre os que começaram a II Guerra Mundial e os que salvaram a Europa servia um propósito: normalizar uma política contra o movimento operário e selar um pacto secular para a alternância, com políticas que se foram afunilando no neoliberalismo, nas privatizações, na precarização do trabalho, na degradação do Estado social nos países mais desenvolvidos — na criação da desigualdade que cria o medo.
A invocação atual do “populismo” por partidos que albergam os populistas (Sarkozy, Berlusconi, Orban, tão amigos que eles são do PSD e CDS, Erdogan tão amigo da NATO, etc.) é só um manto para cobrir a sua responsabilidade. Este nevoeiro ideológico recusa a crítica da injustiça económica, a exigência da solidariedade para com os refugiados e a resposta ecologista à crise climática, rotulando estas propostas como “discursos populistas” e “aliados objetivos” da barbárie — porque recusam a globalização realmente existente, essa sim, a causa da barbárie. Tal exercício, potenciado após a vitória do “Brexit”, tem tido espantosas declinações desde o terramoto Trump.
O facto é que a economia liberal fez a sua função: reforçou a oligarquia e blindou o seu poder. Traem-se as escolhas democratas com os tratados internacionais (e europeus) e os acordos mais ou menos secretos entre cúpulas, nega-se a soberania ao povo e permite-se a mais desbragada impunidade ao poder da finança. Há pouco, um dos maiores bancos mundiais, o HSBC, foi condenado a uma multa de 2 mil milhões de dólares por ter lavado dinheiro de cartéis da droga mexicanos. Não se pergunte se algum diretor foi julgado e condenado pelo crime que reconheceram. Afinal, há uma lei especial para os oligarcas. No ano passado, Portugal teve a sorte de contar com mais 1339 milionários. Mas como não há investimento, só podemos adivinhar de onde vem o dinheiro. Entretanto, o povo pode constatar que há cinco mil milhões para o BES, mas que é um cabo dos trabalhos obter 200 milhões para pensões miseráveis. E os oligarcas talvez nem se apercebam da imagem de ganância que promovem.
Este é o problema. A democracia é a luta contra a desigualdade e contra esta ganância e impunidade destruidora, a voragem da oligarquia. Deixámo-la ganhar um poder imenso e o desespero de quem sofre permite agora todos os demagogos. Só os venceremos se os vencermos na economia, porque é a lei da vida.
Portanto, temos de escolher. Ou continuamos a globalização e a lei dos mercados e teremos Trump, Fillon ou Le Pen, Putin e Jinping, a Goldman Sachs e os cartéis da finança. Ou conquistamos uma economia dos bens comuns e teremos democracia. A esquerda que vai contar é a que sabe onde está o seu combate e a sua gente, que sabe buscar as alianças internacionais para se erguer como alternativa e que sabe dar passos firmes.