Era uma vez no Brasil
Ambiciosa tentativa de “história do cinema por ele próprio”, Cinema Novo, de Eryk Rocha, inaugura o Porto Post Doc, sábado. Dá vontade de ver, rever, descobrir ou redescobrir, uma serie de obras que para o espectador português permanecem essencialmente desconhecidas.
Eryk Rocha, nascido em 1978, é filho de Glauber Rocha, porventura o mais mundialmente célebre cineasta brasileiro da sua geração, a do Cinema Novo lançado no princípio dos anos 60. Como cineasta, tem trabalhado a sua filiação, quer biológica quer simbólica, como uma coisa inescapável. É dele “Rocha que Voa, um filme de 2002 sobre o pai Glauber, e que na altura foi mostrado em Portugal no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira. O Porto Post Doc permite vê-lo outra vez (Rocha que Voa passa no Rivoli, dia 28, às 16h30), bem como os seus outros filmes, no quadro de uma secção chamada Foco Eryk Rocha. E entre esses outros filmes, vale a pena destacar o mais recente, Cinema Novo (que é mostrado na noite do primeiro dia do festival, 26, às 22h00, no Rivoli), ambiciosa tentativa de “história do cinema por ele próprio”, centrada nos anos da explosão do Cinema Novo.
Profusamente ilustrado, e inteiramente composto por imagens de arquivo, retirada aos filmes ou a intervenções televisivas dos seus principais cineastas, Cinema Novo dá imagem e voz a um elenco vasto: Glauber, claro, mas também Nelson Pereira dos Santos (que, mais velho, foi um precursor do Cinema Novo, em filmes como Rio 40ª, em meados dos anos 50, e nos anos 60 assinou Vidas Secas, um “clássico” desse novo cinema), Paulo Cézar Saraceni, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Walter Lima Jr, entre outros. A montagem segue uma estrutura ordenada no relato da explosão e dissolução do movimento, mas isso não a impede de procurar associações temáticas: o filme começa, por exemplo, com vários excertos, retirados a vários filmes, mostrando, genericamente, gente a correr, o que instaura um sentido de urgência que imediatamente transmite a ideia do Cinema Novo como uma inevitabilidade, o resultado de uma acumulação de energia que tinha que desembocar nalguma coisa – e essa sequência inicial culmina com a imagem de uma derrocada, como se ímpeto criativo dos cineastas do Cinema Novo implicasse também algum tipo de destruição. E implicava: a destruição da falsidade do cinema brasileiro “oficial”. Como diz algures Glauber, a questão era “integrar” o cinema brasileiro “na sua realidade cultural”, de que ele se tinha afastado ou ostensivamente ignorava. O Rio 40ª de Pereira dos Santos, filmado em 1955 nas favelas do Rio de Janeiro é directamente referido como um dos filmes que todos reconheceram como um marco a indicar o caminho. Mas, tal como nas contemporâneas revoluções da modernidade que aconteciam na Europa (e a influência da Nouvelle Vague e dos Cahiers é também explicitamente referida), o Cinema Novo escolhia os seus antecessores – esses grandes, e semi-esquecidos, cineastas brasileiros dos primórdios, anos 20 e 30, Humberto Mauro, Mário Peixoto, muito em linha com o mais moderno cinema da época mas plenamente “integrados na realidade cultural brasileira, e de quem Eryk Rocha monta excertos dos filmes mais célebres, Ganga Bruta (Mauro) ou Limite (Peixoto).
Um dos cineastas mais sui generis do movimento, Leon Hirszman, enuncia a ambiciosa tarefa a que todos se propunham: a síntese “do neo-realismo, do cinema revolucionário soviético e do grande espectáculo americano”. Esse foi o desígnio comum, suficiente, como alguém diz, para “unir” um grupo de gente de origens e personalidades muito diversificadas. E durante algum tempo, o esforço foi comum e colaborativo, com convívios frequentes e quase todos a trabalharem nos filmes de quase todos. Alguém aponta um fim preciso para esse tempo: o golpe de 1964 que instalou a ditadura militar e endureceu as próprias condições necessárias a um “realismo cultural”. É o momento em que o Cinema Novo passa de grande experiência colectiva a uma experiência individual, com as idiossincrasias de cada um a tomarem a primazia. É, mais ou menos, o momento em que o filme de Eryk Rocha termina, com um atmosfera um pouco crepuscular, como um “fim de um sonho”. É pena – percebe-se a opção pelo enfoque num núcleo duro do Cinema Novo, mas é pena – que não tenha espaço para focar as ondas de choque geradas por esses filmes e esses cineastas no próprio cinema brasileiro, nessa espécie de “subterrâneo” do Cinema Novo que foi o chamado “cinema marginal”, o “cinema da Boca do Lixo”, os filmes de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane na cooperativa Bel-Air, Oswaldo Candeias, a insolência trash de Mojica Marins – tudo coisas que começaram a acontecer ainda durante o espectro temporal coberto por “Cinema Novo”, que vai, grosso modo, até 1970.
Em todo o caso, no perímetro temático que escolheu, “Cinema Novo” é um documento bastante completo e sempre interessante, e a sua judiciosa escolha do material empregue, reunindo excertos de filmes muito famosos e de filmes bem mais obscuros, cria uma sensação de continuidade plenamente de acordo com o espirito retratado pelo filme. E mais, cumpre um objectivo essencial: dá vontade de ver, rever, descobrir ou redescobrir, todas aquelas obras, que para o espectador português, de um modo geral, permanecem essencialmente desconhecidos.