Assunção Cristas e o radicalismo do amor
A política, sendo a arte do compromisso, dá-se mal com quaisquer radicalismos. Mesmo que sejam os do amor.
Qualquer católico conhece de cor e salteado a expressão “radicalismo do amor”, mas não me lembro de alguma vez algum político a ter utilizado no espaço público. Não será por acaso. Só que Assunção Cristas, com a autoconfiança que todos lhe reconhecem, esteve-se nas tintas para isso e assinou no PÚBLICO um artigo intitulado Ao radicalismo dos populismos responder com o radicalismo do amor. Segundo Assunção, devemos combater o avanço do discurso populista com o “discurso radical do amor”, que “não apenas tolera ou respeita cada um na nossa sociedade, ama-o na sua integralidade e plenitude, mesmo se não compreende, e procura encontrar a concórdia”.
Este pedaço de texto poderia ser retirado de uma homilia, e há nele muita coisa com a qual simpatizo: a crítica a Trump e aos populismos, a afirmação pública de fé, a recuperação da matriz democrata-cristã do CDS. E, no entanto, é preciso ter imenso cuidado com a importação do discurso religioso para o espaço público, sobretudo quando essa importação é feita de forma tão cândida. É bom que a Igreja não esteja fora do mundo; mas é ainda melhor que um cristão não confunda o mundo com a Igreja. O “radicalismo do amor” pode até ser um projecto espiritual altamente meritório a nível individual, mas ele não é um projecto político que a líder de um partido possa apresentar a toda a sociedade. Isso nada tem a ver com incoerência ou falta de coragem em proclamar as convicções religiosas de cada um – tem a ver com a distinção, demasiado preciosa para ser desvalorizada, entre o plano político e o plano religioso. Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Assunção Cristas poderá argumentar que a doutrina social da Igreja, sem dúvida a maior razão de orgulho do Vaticano ao longo dos últimos 125 anos, acaba por de alguma forma meter Deus nos assuntos de César. A encíclica Rerum Novarum (1890), ao propor um caminho intermédio entre o socialismo totalitário e o capitalismo selvagem, exigindo tanto a defesa dos mais pobres com a protecção da propriedade particular, continua a ser um documento de extraordinária actualidade, e foi em cima dessa doutrina que o melhor da social-democracia europeia construiu uma época única de prosperidade para os seus cidadãos, após a Segunda Guerra Mundial. Mas o Compêndio da Doutrina Social da Igreja é muito claro: a missão da Igreja não é de ordem política, económica e social, mas sim religiosa, o que significa que nem ela, nem a sua doutrina social, “entra em questões técnicas”, “nem propõe sistemas ou modelos de organização social”.
Claro está que proclamar o “radicalismo do amor” é enunciar um princípio, e não propor um modelo de organização social, mas, ainda assim, é um princípio demasiado lá de casa – uma meta ambicionada mas inatingível neste mundo, razão pela qual “amar radicalmente o próximo” não vai com certeza ser o primeiro ponto do futuro programa eleitoral do CDS. Como disse atrás, eu simpatizo com a recuperação da matriz democrata-cristã do CDS, porque entendo que isso traz variedade ao nosso sistema político, e porque a velha profecia de Malraux me parece cada vez mais actual: é preciso “reintegrar os deuses”, porque “o século XXI será espiritual ou não será”. Mas convém que Assunção não se entusiasme excessivamente, acabando por confundir política e pregação. A política, sendo a arte do compromisso, dá-se mal com quaisquer radicalismos. Mesmo que sejam os do amor.