O fim da globalização neoliberal?
A era da globalização neoliberal pode estar a chegar ao fim, mas de uma forma e com protagonistas que poucos imaginariam ser possíveis.
1. A ascensão de Margaret Thatcher ao poder no Reino Unido (1979) e de Ronald Reagan nos EUA (1981) inaugurou uma era de larga prevalência das ideias Hayek e Friedman aplicadas à economia e ao comércio internacional. Estas impregnaram o sistema de comercial internacional da Organização Mundial do Comércio (OMC), a actuação do Fundo Monetário Internacional (FMI), bem como as formas de governo da maioria dos Estados, que a gosto, ou contragosto, se tiveram de adaptar a elas. São o substrato ideológico da actual globalização, onde, em nome de um crescente bem-estar — definido fundamentalmente segundo critérios económicos —, o económico prevalece sobre o político e os mercados condicionam a escolha eleitoral democrática. Na lógica neoliberal, o bom governo orienta a sua acção fundamentalmente para os mercados, para os investidores e para a competitividade da economia. Segundo afirmam as teses neoliberais, daí resultará o aumento generalizado do bem-estar da população. Essa será mesmo a única boa governação possível. Fora disso “não há alternativa” como sugere o slogan There Is No Alternative (TINA), dos tempos de Margaret Thatcher.
2. Friedrich Hayek e Milton Friedman são as referências intelectuais incontornáveis do neoliberalismo. Nas faculdades de Economia e na Gestão, mesmo quando os alunos e professores não os lêem directamente, as suas ideias — divulgadas por uma miríade de interpostos autores —, transformaram-nos em pensamento dominante. Nos anos 1980 começaram por ser uma reacção compreensível aos excessos da economia pública, da planificação, da falta de estímulo para a iniciativa privada e investimento empresarial, da estagnação e declínio. A retirada do Estado da economia e da sociedade, a desregulação, as privatizações, a iniciativa privada, o poder dos mercados, o empreendedorismo, a inovação, eram as novas ideias força. A partir dos anos 1990 as ideias neoliberais tornaram-se hegemónicas e começaram a sentir-se os seus excessos: invadiram a generalidade das esferas da vida humana. Sob o seu impulso, a competição/competitividade tornou-se o fim principal do Estado, da economia nacional, da sociedade e do indivíduo. A tal ponto que a geração do milénio nunca conheceu uma economia e sociedade impregnada de outros valores e só por exercício de imaginação, ou pela leitura dos manuais de história, consegue ver como poderia ser.
3. Com a crise financeira de 2007/2008 pensou-se, no início, que o neoliberalismo seria afastado a favor de um papel mais interventivo dos governos na economia. Seria o regresso às ideias de John Maynard Keynes, largamente dominantes até aos anos 1970. Na realidade, aconteceu o contrário. Uma das grandes ironias da história recente foi a hábil transformação de uma crise originada por um capitalismo financeiro desregulado, numa crise de excesso de Estado na economia e sociedade. Mesmo tendo em conta que os Estados têm a sua quota de responsabilidade na crise, foram a falência do Lehman Brothers, os excessos do sistema financeiro de Wall Street e as suas ramificações globais, os principais responsáveis. Houve um falhanço estrondoso dos mercados em se auto-regularem, em serem éticos nas suas práticas e fornecerem bem-estar generalizado à população. Mas foram os Estados e as populações que pagaram a principal factura dos excessos de capitalismo neoliberal na economia nacional e global. Pouco tempo depois, os grandes bancos de investimento e os mercados financeiros voltavam ao business as usual. Nos EUA, a aparentemente rápida recuperação da economia e do emprego escondem realidades muito duras. Muitos dos novos empregos são precários e/ou em condições salariais piores que as anteriores à crise. Outros deixam os trabalhadores no limiar de uma vida digna. Tudo isto conjugado com o efeito de ruptura das novas tecnologias, as quais, pelo seu glamour, levam a ignorar os efeitos negativos no emprego que podem gerar em milhões de vidas normais.
4. Nos Estados do chamado rust belt (“cinturão de ferrugem”) — o Midwest dos EUA, próximo dos grandes lagos e do Canadá, onde se localizam a Pensilvânia, o Ohio, o Michigan, etc. —, o neoliberalismo e a globalização têm poucos adeptos. Estava aí a principal base de apoio de Bernie Sanders, o maior rival de Hillary Clinton no Partido Democrata. Donald Trump conseguiu captá-los, Hillary Clinton não. Estas regiões em declínio industrial, outrora parte do núcleo central da economia americana e zonas ricas e prósperas, estão há várias décadas em decadência. A maior parte da sua população desceu na escala económica e social e/ou caiu na pobreza. O caso da cidade de Detroit, no Michigan — o cerne histórico da indústria automóvel nos EUA —, é provavelmente o mais óbvio. A população da cidade regrediu de 1,8 milhões de habitantes em 1950, para cerca de 700.000 na actualidade. A produção automóvel encerrou totalmente ou foi deslocalizada. Vastas áreas da cidade estão num estado de degradação urbana que faz lembrar um cenário de guerra. A criminalidade é das mais elevadas dos EUA. Na costa Oeste na Califórnia, especialmente nas indústrias high tech de Silicon Valley, e na costa Leste, em Nova Iorque, em particular em Wall Street, a globalização gerou imensa riqueza. Aí localizam-se os seus maiores adeptos e ganhadores. No rust belt gerou pobreza, exclusão social e a descida aos infernos.
5. Paradoxalmente, nas eleições dos EUA, em termos de programa económico, o candidato mais próximo das teses internacionalistas neoliberais não foi Donald Trump mas Hillary Clinton. No plano de Trump com 7 pontos para reconstruir a economia da América, podia ler-se o seguinte: (i) retirar-se da Trans-Pacific Partnership (TPP), ainda não ratificada; (ii) nomear um negociador duro e inteligente para lutar em nome dos trabalhadores americanos; (iii) instruir o Secretário do Comércio para identificar violações de acordos de comércio que um país estrangeiro possa estar a usar para prejudicar os nossos trabalhadores […]; (iv) dizer aos nossos parceiros da NAFTA que tencionamos renegociar imediatamente os termos desse acordo para obter condições mais favoráveis para os nossos trabalhadores. Se não concordarem com a renegociação, serão informados que os EUA tencionam retirar-se do acordo […]. (v) Instruir o Secretário do Tesouro para qualificar a China como manipulador cambial; (vi) Instruir o Representante para o Comércio dos EUA [a agência federal responsável pelo comércio] para instaurar casos contra a China, quer na OMC, quer internamente. (vii) Usar todos os poderes legais presidenciais para resolver as disputas com a China, se esta não parar com as suas actividades ilegais, incluindo o roubo de segredos comerciais americanos […]”. Se Trump puser mesmo em prática estas promessas, as ideias de Hayek e Friedman aplicadas ao comércio livre, que entroncam no pensamento económico clássico de Adam Smith e David Ricardo, podem acabar por ir parar ao caixote do lixo. Será uma ruptura com a tradição neoliberal do Partido Republicano, enraizada desde Reagan nos anos 1980. Em seu lugar surgirá alguma forma de proteccionismo ou de nacionalismo económico. Pelo impacto dos EUA na economia mundial, poderá ser o princípio do fim da globalização neoliberal. E com um populismo de direita a abandoná-la, não a esquerda social-democrata / trabalhista / socialista.
6. São bem conhecidas as críticas de activistas dos direitos humanos, dos direitos dos trabalhadores, do ambiente (Human Rights Watch, International Labor Rights Forum, Greenpeace, etc.) à globalização baseada nos princípios neoliberais dos mercados abertos e do livre comércio internacional. Muitas das suas críticas são dirigidas à deslocalização das empresas e aos abusos das empresas multinacionais, que exploram, a seu favor as vantagens de custos laborais mais baixos e da quase ausência de protecção ao trabalho, em muitos dos países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo deixam, nos países mais desenvolvidos, um rasto de desemprego e de pressão para redução de salários. Na óptica de muitos trabalhadores norte-americanos, tradicionalmente próximos do Partido Democrata, as medidas do programa económico de Donald Trump têm uma ressonância similar à dessas críticas. Ao contrário desses movimentos que nunca conseguiram influenciar o Partido Democrata, nem os seus governos, ao ponto de romper, ou sequer de renegociar acordos de livre-comércio. Trump mostrou-se determinado fazê-lo durante a campanha. (Vamos ver se o fará mesmo no poder). Quanto a Hillary Clinton, pareceu mais preocupada com as políticas de identidade de afro-americanos, latinos, muçulmanos, mulheres, gays, etc. do que com os direitos dos trabalhadores e as questões da economia. O seu programa pouco respondia às procurações da classe média e média-baixa menos qualificada, aquilo a que classicamente se chamava a classe trabalhadora, ou proletariado na linguagem marxista. O resultado, tal como temos visto também na Europa, é que este eleitorado sociologicamente de esquerda passou a votar na direita populista e nacionalista.
7. A suprema ironia da metamorfose política em curso é ser um milionário capitalista quem pretende romper com acordos de livre-comércio, invocando o interesse dos trabalhadores. Fá-lo, claro, porque o seu próprio interesse empresarial converge, nesse aspecto, com o de milhões de trabalhadores do seu país — os seus negócios de imobiliário, hotéis, casinos, etc., estão centrados no mercado interno dos EUA, não nos mercados internacionais. (O mesmo ocorre com a New Balance que tem parte da produção ainda no Massachusetts e no Maine e apoiou Trump por este não tencionar ratificar a TPP; quanto à rival Nike, apoiou Obama na negociação da TTP dado o seu modelo de produção já estar totalmente deslocalizado para a Ásia, lucrando, ainda mais, com o acordo.) Em qualquer caso, a ruptura com o internacionalismo neoliberal vem da direita populista e nacionalista — com um programa de oposição aos acordos de livre-comércio —, e não da esquerda social-democrata / trabalhista / socialista, como seria ideologicamente mais expectável. Esta enfraqueceu-se a si própria como movimento de massas e deixou de atrair a classe trabalhadora. O vazio foi preenchido pelo populismo. Dois erros são fatais. O mais óbvio foi a adesão, ainda que parcial e mitigada, às teses do neoliberalismo. O menos óbvio, mas não menos fatal, foi ter passado a tribalizar-se em facções de ambientalistas, feministas, defensores dos direitos das minorias, etc. Ao promover a diversidade cultural atomizou a sociedade e foi, ela própria, vítima dessa lógica fragmentadora. Em seu lugar emergiu a direita populista como força de massas. Prospera na insegurança cultural e apropriou-se de causas como o descontentamento contra a globalização. Com Trump na presidência dos EUA está, pela primeira vez, em posição de a reverter. A era da globalização neoliberal pode estar a chegar ao fim, mas de uma forma e com protagonistas que poucos imaginariam ser possíveis.
Investigador