Diário de prisão

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Hoje completo sete dias desde a última refeição e, apesar de me sentir fisicamente debilitado, a minha determinação con­tinua: que me expliquem legalmente a razão de continuar em isolamento e que me deixem ver o meu advogado. Sei que o Walter esteve aqui na quarta-feira com o Kiari e foi barrado. De regresso a Luanda, fez um escarcéu na imprensa, e no dia seguinte passámos a ter o direito de receber visitas, mas só dos familiares mais chegados. Bravo, Walter! Ainda assim, tudo me soa a regras improvisadas em cima do joelho (makeshift) e preciso de vê-lo para ficar mais elucidado. Ah, foi também depois desse xinguilamento que nos passou a ser permitida a leitura, o que, com esta luz, é capaz de nos fazer muito mal à visão, mas faz um bem incrível à alma.

O que tenho então comido ao longo destes dias? Ontem comi um iogurte, três biscoitos de arroz, quatro bolachas de água e sal e o último chocolate numa caixa de três que, estando aí desde domingo, já tinha sido devorado pelas formigas. Anteon­tem comi duas tangerinas e cinco bolachas Prince; no dia antes desse foram três tangerinas e cinco bolachas; e naquele que lhe precedeu, uma maçã, biscoitos de arroz (salgados) e bolachinhas de água e sal. Basicamente, tenho metido um mínimo para me aguentar de pé.

Sinto o meu corpo protestar, por vezes ruidosa e dolorosamente. Peço-lhe desculpa. Os guardas prisionais que vêm diligen­temente trazer-me as refeições começam a desistir de tentar me convencer. No outro dia, um OSA (oficial superior de assistência, normalmente o agente mais graduado, que faz a vez do diretor na ausência deste) tentou me atirar uma conversa religiosa, mas eu travei-o logo, dizendo que sou ateu. Ainda assim insistiu em "speak his piece", então deixei-o. Agradeci no final pela preocupa­ção e mandei voltar a comida. Da última vez foi um jovenzito que tinha ar de ser irmão mais novo de um dos seguranças do meu vizinho na Vila-Clotilde: "Mas irmão, não aceita porquê? Assim o irmão vai dizer que não andamos a lhe trazer a comida, né? Vai nos fazer perder o emprego e emprego tá difícil." Que miséria!

Estes últimos dias comecei a ter visões das iguarias apetitosas que a minha mulher prepara e, de imediato, o estômago suspirou com um ronco. Afasto rapidamente esses pensamentos pecaminosos bebendo um gole de água e mudando de posição. Ainda tenho um iogurte, uma maçã, uma barra energética, dois pacotinhos de bolachas tarteletes (com quatro biscoitos cada), um pacote de uns doces mexicanos que tenho medo de abrir porque sei que serão invadidos pelas formigas, um pacote de biscoitos de milho (lifesavers, iguais aos de arroz, parecem pipocas gigantes e circulares) e muitas bolachas sortidas (água e sal, doce, biscoitos secos) que vêm ainda dos meus dias na DNIC e têm constituído a minha ração de combate. Hoje vou matabichar/almoçar a maçã.

Estou só à espera de me sentir mais fraco.

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Na prisão de Calomboloca, Luaty Beirão manteve um diário que agora chega a público numa edição Tinta-da-China (preço: 14,31 euros)

Foi a maçã e um pacote de tarteletes.

Não faço nem puta ideia de que horas sejam. Vou voltar a deitar-me. Até agora os livros não saíram da censura, por isso será um domingo entregue aos pensamentos.

Tomei um "banho" e lavei os boxers de 15 dias, tudo com 2,5 litros de água. Coloquei os boxers no prato da ordem que usei como bacia, pus-me o mais vertical possível em cima do prato e fui despejando um fio de água na cabeça muito devagarinho com a mão direita, enquanto a esquerda fazia movimentos frenéticos para espalhar cada gota pela maior superfície possível. Ocupei-me mais das cavidades (sovacos e derregu) do que com o resto do corpo. Claro que dei especial atenção e cuidado ao tubo engravidador.

Depois de alguns fios de água, o prato com o boxer já tinha líquido suficiente para uma lavagem deficiente dessa peça íntima. Sabão, esfregadela, espremedela, água imunda, troca, sabão, esfregadela… Ah, antes de esfregar o boxer ensaboei-me e deixei "atuar" enquanto me entregava à missão de lavadeiro. Depois de duas demãos, o mesmo método (tirei o prato de debaixo de mim para não apanhar com a água suja do meu corpo, claro, né? Duhh!): fiozinho de água até não sentir mais nada a escorregar, depois a última demão no boxer e pronto, fresco e preparado para me voltar a esticar na cama de betão armado. Que vidoca!

 

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