Tribunal negou a May o poder para ditar os termos do "Brexit"

Juízes sublinham que Governo não tem poderes para desencadear, sem o aval do Parlamento, as negociações para a saída da União Europeia. Decisão, que terá de ser confirmada pelo Supremo Tribunal, abala autoridade de May e torna menos provável um "hard Brexit"

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O Tribunal Superior insiste que só o Parlamento pode reverter uma decisão que ele próprio aprovou Niklas Hallen/AFP

Pode o que já era ciclópico e confuso tornar-se ainda mais confuso e ciclópico? Pode, como descobriu Theresa May nesta quinta-feira, ao ser confrontada com a decisão do Tribunal Superior britânico de que o Governo não pode accionar, sem o aval do Parlamento, o artigo 50 do Tratado da União Europeia, que vai pôr em marcha o cronómetro para a saída do Reino Unido. A decisão vai ser alvo de recurso, mas a manter-se inflige um enorme revés à primeira-ministra, não só porque adiará o início do processo, mas sobretudo porque nega ao executivo os plenos poderes que May reivindicava para negociar nos seus próprios termos com Bruxelas.

Mal foi conhecido o veredicto, Downing Street confirmou que vai recorrer para o Supremo Tribunal, que libertou já a agenda dos seus 11 juízes para ouvir, entre os dias 5 e 8 de Dezembro, os argumentos das duas partes. “O Governo está desiludido com a decisão do tribunal”, reagiu a porta-voz de May, repetindo que o executivo está determinado a respeitar a decisão dos eleitores, quando a 23 de Junho aprovaram em referendo a saída da UE.

Declarações que não taparam o potencial sísmico do veredicto, medido pela imediata subida da cotação da libra, que registou o seu valor mais alto face ao dólar em três semanas. Uma flutuação bem explicada numa nota enviada pelo Deutsche Bank aos clientes, alegando que o envolvimento do Parlamento no processo reduz as hipóteses de ruptura drástica do Reino com a UE (conhecida por hard Brexit) e fragiliza a autoridade de May, tornando mais provável a convocação de eleições antecipadas, “seja antes, seja depois de accionar o artigo 50”.

Os conservadores dispõem de maioria no Parlamento, mas a vantagem de que dispõem é inferior ao número de deputados que se opuseram ao “Brexit”. E, perante cisões no partido que ponham em causa a sua autoridade, May pode ser tentada a antecipar as legislativas de 2020, sobretudo face às sondagens que colocam os tories com grande vantagem sobre os trabalhistas.

"Parlamento é soberano"

Desde que tomou posse, a 13 de Julho, a nova líder do Partido Conservador insistia que o Governo tinha – ao abrigo dos seus poderes executivos e mandatado pelo voto popular – capacidade para decidir sozinha o momento em que formalizaria a decisão de sair e os termos em que iria negociar com os outros Estados-membros. Um grupo de cidadãos, encabeçado pela gestora de investimentos Gina Miller, discordava e nesta quinta-feira o Tribunal Superior deu-lhes razão. “A regra mais fundamental do quadro constitucional britânico é a de que o Parlamento é soberano”, sublinhou o juiz John Thomas, o mais alto magistrado britânico, que presidiu ao caso.

O principal argumento dos subscritores da queixa, que o tribunal atendeu, é o de que os “direitos fundamentais” atribuídos aos cidadãos britânicos com a adesão do país à UE, estão garantidos pela Lei das Comunidades Europeias, aprovada em 1972 pelo Parlamento, não lhes podendo ser negados por uma simples decisão do executivo, tanto mais que o referendo não é vinculativo.

“Este veredicto é uma vitória para todos os que acreditam na supremacia do Parlamento e no respeito da lei”, reagiu Deir dos Santos, um britânico de origem espanhola que foi o primeiro a recorrer aos tribunais para travar os planos do Governo para o “Brexit”. Tal como os outros, Dos Santos assegura que a iniciativa não visa impedir a saída da UE, mas para impedir que o executivo tome decisões que vão afectar de forma drástica os cidadãos “sem consultar o Parlamento”.

Mas não é assim que os que se bateram pela saída olham para esta decisão. E nenhum mais do que Nigel Farage, o agora líder interino do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP). “Temo que a traição possa estar próxima”, reagiu, afirmando que a decisão do tribunal e as manobras que se avizinham no Parlamento vão contribuir para um “meio-Brexit”. “Temo por cada tentativa que será feita para bloquear ou adiar o accionamento do artigo 50. Mas eles não têm ideia do nível de revolta que vão provocar nas pessoas”, avisou.

O executivo conservador diz que pretende manter o prazo definido por May quando, no último congresso do Partido Conservador, se comprometeu a notificar Bruxelas até ao final de Março  – o que, tendo em conta os dois anos previstos para as negociações, permitiria que o país deixasse a UE antes das próximas eleições europeias, em 2019. Uma intenção, concordam a imprensa e os comentadores políticos, que só pode concretizar-se se o Supremo reverter o veredicto anunciado nesta quinta-feira, que vários especialistas consideram mais definitivo do que o Governo desejaria. “É, à primeira vista, quase à prova de recurso”, escreveu o especialista David Allen Green, comentador de assuntos legais do Financial Times, sublinhando que foi “aprovado unanimemente por três juízes experientes” e “a certo ponto parece afirmar que o caso apresentado em tribunal pelo Governo era demasiado frágil para justificar a sua própria posição”.

Deputados têm a palavra

A grande questão é agora saber até que ponto os deputados britânicos – que defenderam por larga maioria a permanência do Reino Unido na UE – vão assumir o risco de ser vistos como estando a bloquear (ou pelo menos adiar) uma decisão aprovada pela maioria dos eleitores, mesmo que o referendo não tenha sido vinculativo.

O jornal Guardian lembrava, por exemplo, que apesar de o Labour ser de forma quase unânime a favor da permanência, o “Brexit” venceu em quase 70% dos círculos que elegeram deputados trabalhistas. O que ajuda a explicar que, num inquérito realizado pela Reuters, grande parte dos deputados que fizeram campanha contra o “Brexit” dizia que, se fosse chamado a pronunciar-se, autorizaria May a accionar o artigo 50.

Mas ao estipular que só o Parlamento pode reverter uma decisão que ele próprio aprovou em 1972, o tribunal abre caminho a que a deputados tenham uma intervenção em todo o processo que vai além de uma simples votação. David Davis, o ministro para o “Brexit”, admitiu na BBC que, se o Supremo mantiver a decisão, o Governo terá de esperar pela aprovação, nas duas Câmaras do Parlamento, de uma lei para a formalização do divórcio com a UE.

Um processo que se advinha longo, sem desfecho garantido (os conservadores não têm maioria na Câmara dos Lordes) e que pode ser usado para impor condições ao Governo – seja sobre os objectivos de Londres para as negociações, seja sobre o desfecho de todo o processo. “Não é de excluir que o Parlamento queira decidir se aceita ou não os resultados das negociações. E pode mesmo exigir que o acordo negociado pelo Governo seja submetido aos eleitores sob a forma de um segundo referendo”, escreveu no FT o jurista britânico Jolyon Maugham.

O veredicto, analisava o Guardian, “é o desenvolvimento mais importante para o 'Brexit' desde a eleição de May e é claramente o dia mais encorajador para aqueles que a 23 de Junho votaram pela permanência.”

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