Proibir estendais nas fachadas? Casas são para viver e deixar viver

Códigos que proíbem que a roupa pendurada seja vista pelos transeuntes devem ser aplicados quando houver alternativas. A cidade e a habitação não são cenários de teatro para serem preenchidos apenas por palavras e imagens bonitas

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*L/Flickr

O que é que um código regulamentar municipal, estendais e arquitectos têm em comum?

O código regulamentar que proíbe os estendais nas fachadas dos edifícios existe em muitas cidades, mas não é muito aplicado. E por mais que a cidade anseie por fotografias de revista, os turistas eternizam fachadas com cores, texturas e movimento — com calças, lençóis, "t-shirts" e, sim, também roupa íntima. Fica feio dizem uns, dá má impressão dizem outros. É aquilo que é, vivem pessoas dentro dessas casas, pessoas que têm roupas e essas depois de lavadas precisam de secar.

Muitos edifícios no tecido urbano vivem em simbioses complexas. Existe a relação com a cidade e depois existe a relação, quase nunca pacífica, com o seu habitante. O alçado exterior dificilmente dá resposta as necessidades do seu interior, onde vivem pessoas verdadeiras, num quotidiano real. Essas necessidades não podem ficar em segundo plano. O desejo de obter imagens idílicas do alçado urbano, a perseguição do autor do projecto pelo que considera belo, não devem aniquilar o direito de viver num espaço funcional. Quem nunca se deparou com um interior, ou a imagem de um, imaculadamente branco e se questionou: onde poria as malas de viagens, as caixas dos electrodomésticos, a maldita tábua de passar a ferro. Onde iria pendurar a roupa? Deixar o calçado molhado, a bicicleta que leva todos os dias para o trabalho?

Em espaços cada vez mais minimalistas, em edifícios recuperados com dimensões verdadeiramente desafiadoras, onde está o espaço para viver? Onde fica o lugar para se ser real? Códigos que proíbem que a roupa pendurada seja vista pelos transeuntes devem ser aplicados quando houver alternativas. Não podem ser soluções alternativas duvidosas e pouco sustentáveis como as lavandarias "self-service", que vão beber aos Estados Unidos o método, mas não a sua eficácia, quando falamos da relação preço/tempo/eficácia.

Se o diálogo com os arquitectos for mais constante talvez estes percebam (se é que não o sabem já) que a alternativa é uma cave, ou um último piso, onde cada apartamento tem direito a um espaço para arrumos. Que é também necessário desenhar no edifício espaços de lavandaria, onde existam máquinas de lavar e espaços onde secar a roupa (de preferência externos). Não é difícil identificar essa necessidade, não é difícil copiar um programa repetido até à exaustão por essa Europa fora, então por que razão não se faz? Por que é que a câmara decide escrever e aplicar um código sem pensar primeiro na causa do problema? Por que é que não tenta resolvê-lo ao invés de o mascarar com a proibição? Não seria mais fácil aprovar projectos que dão primazia à boa vivência e não às aparências e ao lucro até à exaustão?

A qualidade de vida não é um dos valores mais importantes que os arquitectos devem preservar? “A forma segue a função” — esta frase de Sullivan é ainda hoje ensinada e importante para o acto de projectar. Ora a função de um espaço, por mais pequeno que seja, não é deixar viver e dar respostas a problemas reais? Onde é que está a verdade de espaços recuperados, quando nos vendem quase como luxo arrumos minúsculos? Quais são as soluções para todos os outros aspectos da vida familiar?

O que é que um código municipal, estendais e os arquitectos têm em comum? Tudo! Os municípios ao detectar problemas devem criar pontes de diálogo para encontrar soluções. Aos arquitectos cabe-lhes estar vigilantes. Reflectir e desenhar espaços que vivam e deixem viver. É papel também de todos nós sermos pró-activos no acto de habitar. O lugar exterior (a cidade) e espaço interior (habitação) não são cenários de teatro para serem preenchidos apenas por palavras e imagens bonitas.

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